Pasta Joia Review - 5
A serenata das cigarras
A
monotonia daquelas tardes de primavera no sertão mineiro só era quebrada pela
cantoria das cigarras. Na minha infância, nos anos 1970 e 1980, dizia-se que
elas chamavam a chuva, após longo período de seca. O forte soar desses insetos
surgia para fazer brotar a esperança de grama verdinha. Mas tal qual a
personagem da fábula de La Fontaine, sua melodia era vista apenas como a
incessante serenata do boêmio inveterado. Os dias e as noites quentes eram puro
desfrute da espécie, cuja alegria incomodava formigas laboriosas e humanos
irritadiços.
Nunca
me olvidei daquele coro ao cair da tarde, com pequenas oscilações de ritmo dos
cantores egoístas ou desafinados. A meninada ficava intrigada com
um bichinho virava sirene potente, emulando sons e nostalgias. Milhares de
vozes fixadas em troncos e galhos cidade afora davam tonalidades modorrentas ao
pôr do sol. E com elas, o inverno seco despedia-se de vez de nossos corações,
deixando-nos prontos para abraçar a chegada do verão e suas umidades.
Ao
pesquisar, já adulto, sobre as características da Cicadoidea, o
nome científico da cigarra, me surpreendi ao descobrir nela a força do
sertanejo. Algumas variedades chegam a resistir 17 anos e a alcançar 10
centímetros de cumprimento. Parasita da seiva de árvores e praga de plantações,
a cigarra agarrada ao alto das copas grita a paixão e os instantes finais de
uma vida longa até então escondida no silêncio. Outubro e novembro são meses de
acasalamento. Os lânguidos ci-ci-cis dos machos visam atrair fêmeas. Quanto
mais alto o canto, mais chance eles têm.
O
ruído que ia até 120 decibéis, superando o de uma viatura policial, é também a
fase final da vida breve das cigarras adultas, quando estão a se reproduzir. É
a história real da velha crença de que o cisne-branco passa toda vida
completamente mudo, mas pode cantar bela e triste canção pouco antes de morrer.
O adeus do inseto se dá ao estourar de tanto cantar, caindo ao solo e ao
silêncio eterno. Reza a crendice popular que as cigarras começam a ci-ci-cizar
no dia de estreia da primavera e só se calam em 2 de novembro, Dia de Finados.
Por isso, biólogos perdoem meus excessos.
Ouço mesmo no coral desses barítonos silvestres a liberação do desejo de vida,
endereçado a todos ouvidos receptivos. De ramo em ramo, de suspiro em suspiro,
faziam das tripas vento. E neste vento sopra a emoção. Quando sua melodia
cabocla suplanta a tarde e se cobre de luar, ressuscita novinha em folha
lembranças esquecidas. Mas flanar ruas e praças nessas horas embaladas pela
sinfonia animal também implicava o risco de tomar uma rajada de xixi dos
pequenos músicos. Ci-ci-ci…
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