Pasta Joia Review - 15
Doutor Máximo
A
roupa branca e uma surrada valise de couro eram marcas pessoais de Márcio
Carvalho Lopes. Também eram a assertividade e a dedicação integral ao ofício,
características que lhe deram status de ídolo perante seus pacientes. Doutor
Márcio era mesmo um tipo raro de médico, ainda mais nos dias atuais.
Na
Curvelo do século passado, aquele homenzarrão grisalho e sisudo espantava males
do corpo com gestos austeros. Bastavam duas palavras com sua voz grave, uma
receita com seus garranchos e sua mão direita sobre onde doía para que a cura
se pusesse a caminho. Parecia um pajé laico e moderno, além de um misto entre
os televisivos House e doutor Kildare.
Seus
diagnósticos breves e precisos, antes da confirmação por exames, colocavam
doutor Márcio no topo da confiança popular, a mesma que o fez prefeito por um
curto período. Tal qual o pai que dava bronca no filho travesso, ele repreendia
com rigor o cardiopata que descumpria dieta e medicação. Como frases
cortantes, expunha causas banais de endemias e enquadrava quem se automedicasse.
Imagino até como agiria em tempos de doutor Google.
Essa
postura, mal vista por alguns, era a expressão crua de sua paixão pela
medicina. Doutor Máximo, como eu o chamava, se forjou nos consultórios, nas
salas de cirurgia, nos leitos de doentes e nos livros de referência lidos
madrugada adentro. Esse clínico geral de Pedro Leopoldo (MG), morto aos 64 anos
na cidade que o acolheu, sabia bem o que fazia.
Foi
com esse espírito missionário e nenhum recurso moderno de hoje que ele
colecionou êxitos. Nunca perdeu plantão ou traiu a consciência. As longas
jornadas de trabalho e a sua valente veraneio azul fizeram dele uma versão
unitária e informal do Samu local. Os milagres de Márcio começavam já na
súplica do enfermo, que, no auge da agonia, exigia sua presença.
Certa
vez, aos nove anos, delirando de febre e sofrendo de hepatite crônica, roguei
por ele, prece essa ouvida por Deus e minha mãe. Minutos depois, ouvi o ronco
de seu carrão e vi sua figura aparecer no meu quarto. Perguntou que remédio eu
estava tomando e depois de olhar o frasco, determinou: “suspenda já. Ele é
alérgico à sulfa”. Voltou à ronda. Eu estava salvo.
Recorri
outras vezes à “última instância médica” curvelana, até para domar meu estresse
de vestibulando. O primeiro socorro que Márcio me deu foi na cesariana. Pelas
suas mãos, eu e meus dois irmãos chegamos a esse mundo. No terceiro, tirou as
trompas de minha mãe para evitar nova gravidez de risco.
Nicolau
Neto, saudoso colunista social do Estado de Minas e
conterrâneo do doutor Máximo, dizia que eu carregava no rosto a seriedade dele.
Gostava de ouvir isso porque queria ser visto como alguém que viveu sua missão
sem recuar. Aquele médico de caráter exemplar era ainda fazendeiro e
filantropo.
Na
vida pessoal, sofreu duro golpe. Após escolher Marcinho como seu sucessor no
Hospital Santo Antônio, onde militou por 32 anos, o câncer avassalador do
herdeiro cassou seus planos. Ficou a dor e o orgulho pela coragem do rapaz.
Dias após o juramento de Hipócrates na cerimônia de formatura, o único filho
homem de doutor Máximo subiu ao céu.
Márcio e a esposa Terezinha, com as
quatro filhas, eram uma família rica em boa vontade. A viúva é a cara da
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Em 20 de novembro de 1990,
o doutor Máximo se “encantou”, como dizia o médico João Guimarães Rosa.
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