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Mostrando postagens de 2024

O azul daqueles olhos

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Sílvio Ribas Oswaldo jamais esqueceu aquele encontro. No início de noite na fazenda, pouco depois de levantar-se da velha poltrona para matar a pequena aranha que adentrava a sala pelo chão de tábuas compridas, o brilho de duas fileiras com quatro pares de olhos dela mudou o destino de ambos. O que era aversão transformou-se em fascínio. O azul-cobalto que cintilava nas minúsculas esferas o fez parar e se agachar, como que capturado por um feitiço. A mente de Oswaldo retornou à Terra, após breves segundos em que flutuou no extraordinário sob os sons noturnos do sertão.  Lembrou-se de Riobaldo e suas interrogações sobre os mistérios do olhar de Diadorim. O que havia naquele aracnídeo que o deixava tão hipnotizado? Como o canto longínquo de uma sereia ou o olhar fulminante de Medusa, aquele avistamento breve legou-lhe uma recordação eterna. A aranha recuou lentamente, deslizando-se de volta à varanda, até sumir na escuridão. A partir de então, Oswaldo sentiu o veneno de uma nostalgia...

1987: O som das manhãs de sábado

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Sílvio Ribas   No fim de 1987, após concluir as últimas provas do ensino médio no colégio, deixei minha cidade natal, Curvelo (MG), rumo a Belo Horizonte para prestar vestibulares para Jornalismo na UFMG e na PUC-MG. Além de minhas próprias apostilas, acompanhava aulas avulsas do cursinho pré-vestibular Pitágoras. Era um tempo especial, de encarar o crivo para uma nova etapa.  Fui morar em uma velha e simples república de estuantes, conhecida como Pensão da Tia Nem, localizada no centro da cidade, na Rua São Paulo, que abrigava dezenas de rapazes vindos do interior, na época concentrada nos vindos de Curvelo, Almenara e Ponte Nova. Os sábados naquela pensão tinham uma rotina peculiar. Eram dias dedicados à faxina, e ninguém podia ficar deitado por muito tempo. Mas, depois de arrumar as camas beliche e trocar de roupa, havia um momento de pausa em que podíamos nos deitar novamente, ouvindo o radinho de pilha a tocar os sucessos da época, quase sempre sintonizado na BH FM. Essa...

Rimas e sinas do Curvelo

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  Sílvio Ribas "Prazer em revê-lo em Curvelo." A frase, dita com leveza pelo amigo Léo Cunha quando o recepcionei na minha terra natal, em um longínquo dia de 1991, carregava tanto uma missão quanto um prazer da rima. O escritor guardou-a zelosamente por anos, à espera do encontro de lugar e ocasião certos para resgatá-la. Naquela cidade quente e poeirenta do sertão mineiro, que me viu nascer e amadurecer, suas palavras transformaram-se, naquele instante, não apenas em destino, mas também numa suave melodia para os meus orgulhosos ouvidos. Ao longo dessas décadas, passei a testar novas rimas e sinas a partir do peculiar nome do meu município: desvelo, cotovelo, novelo, demovê-lo... Era como se cada vernáculo usado revelasse algo mágico emergido na confusão do cotidiano. Até marcas de produtos ou estabelecimentos comerciais evocavam elos com o "vêlo". Forçando um pouquinho, até a aguardente José Cuervo, o magazine Riachuelo e a sapataria Corello, criavam para mim fal...

Se o pinguim da geladeira falasse

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Sílvio Ribas Lá estava ele, imponente, sobre a geladeira branca Electrolux de Arminda. O pequeno pinguim de porcelana parecia vivo, observando e ouvindo tudo. De seu trono gelado na cozinha, ele era espectador privilegiado do povo que circulava na velha pensão no centro de Curvelo (MG), uma casa repleta de histórias e afetos. Na sala de TV, o tique-taque do velho relógio de parede parecia dar ritmo aos dias, como um coração marcando o tempo. Do canto da cozinha, o pinguim também ouvia as conversas arrastadas de minhas tias-avós, cheias de lembranças de antigamente, que mais pareciam contos tirados de livros consagrados.  Aquele pássaro elegante que não sabia voar, tachado de símbolo brega, queria mesmo era acompanhar o terço das hóspedes, rezado nos quartos. Essas vozes devotadas ainda ecoam na minha memória como cânticos. Mas, por cima, o simpático artigo de decoração sondava o vaivém no generoso lar de Arminda. Na cozinha, o pinguim era testemunha das delícias que se aqueciam no ...

Mesma praça, novo jardim

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CURVELO, A GRANDE VEREDA DO CERRADO Proposta de intervenções urbanas para transformar a cidade para sempre Ao implementar as sugestões a seguir, inspiradas em outras cidades e adaptadas à realidade local, Curvelo poderá se tornar referência em planejamento urbano sustentável, promovendo o convívio, a cultura, o lazer e o bem-estar para todos os habitantes. Além disso, a transformação do centro da cidade em uma "Grande Vereda do Cerrado" será um convite para que todos explorem e apreciem as belezas naturais e culturais da região. O resultado disso tudo pode consagrar o município como a capital do Circuito Turístico Guimarães Rosa. 1. Conversão de ruas em calçadões Inspirado no modelo de Boston, EUA, onde áreas como a Freedom Trail são exclusivas para pedestres, em Curvelo, podemos selecionar algumas ruas-chave no centro da cidade para serem transformadas em calçadões de tijolos vermelhos. Ruas como a Zuzu Angel podem se tornar espaços ideais para o convívio de pedestres, com á...

Tonho e sua dona

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Sílvio Ribas  Adotei para mim mesmo uma expressão tipicamente caipira, lá do meu sertão em Curvelo (MG), aquela na qual homens chamam suas esposas de “minha dona”. Sei que o significado dela para eles simplesmente equivale ao de “minha mulher”, sem suscitar qualquer conotação de posse. Mas também entendo que esse modo de tratamento revela o sincero respeito pelas “rainhas do lar” ou “patroas”, como se diz no campo e na cidade. “Minha dona” me evoca ainda a palavra italiana que significa mulher. Mas o que mais me traz à memória nessa expressão é uma figura folclórica de meu passado, o seu Antônio, pequeno proprietário rural vizinho do sítio de meu pai, Maurílio, mais conhecido como Tonho da Dedeca. O sobrenome do apelido dele vinha do nome da esposa, a dona Dedeca, com quem fazia um casal boníssimo e de inspiradora simplicidade.  Matreiro como todo mineiro dos Gerais, toda vez que alguém lhe propunha um negócio — fosse um cavalo manco, uma vaca prenha ou um leitão gordo demais ...

A sonata perdida

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Sílvio Ribas Lilibeth – para alguns, Bete; para outros, Lili – deixou o Conservatório de Música da UFMG envolta em uma brisa suave que parecia orquestrada pela própria tarde. O sol, meio tímido e fugidio, tingia a Afonso Penna, principal a Avenida de Belo Horizonte, de tons dourados, como se quisesse eternizar aquele instante.  Lili subiu sozinha na lotação azul da capital mineira ainda absorta nas escalas e melodias que ensaiara durante horas. Seus pensamentos flutuavam, escapando da mente como partituras soltas ao vento. Quando o ônibus cruzou a Getúlio Vargas, algo impalpável, como um acorde inesperado, prendeu-lhe a atenção.  Entre os sons das buzinas, o murmúrio de conversas dispersas e o chiado das portas, ouviu, nítido e etéreo, um solfejo. Como se alguém, escondido entre a plateia distraída de trabalhadores cansados, donas de casa carregando sacolas e estudantes uniformizados, estivesse sussurrando uma melodia que só Lilibeth poderia identificar. Era um trecho da Sonat...

Minhas velharias

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Sílvio Ribas Confesso que ainda me surpreendo quando alguém me trata por “senhor”. É verdade que sinto um certo orgulho e gratidão pelo respeito, pela polidez, pela consideração envolta na palavra. Mas, ao mesmo tempo, percebo que existe um jovem dentro de mim que reluta em ser visto como alguém “mais velho”, ainda que eu não tenha exatamente atingido o status de “idoso”.  Ocorre que pertenço a uma geração de transição entre séculos e milênios, que testemunhou uma mudança intensa e rápida na forma de se relacionar com o mundo, de viver e de compreender o cotidiano.  Somos aqueles que escreveram cartas à mão, que datilografaram em máquinas, que ouviram o som das fichas caindo nos orelhões. E hoje, nos vemos em meio ao universo digital, lidando com a velocidade dos bits, das mensagens instantâneas, das buscas na internet e, mais recentemente, com a inteligência artificial.  Adaptamo-nos, e aprendemos a manejar essa rapidez tecnológica, mantendo ainda uma certa sabedori...

Paixão herdada

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Sílvio Ribas Nascemos em milênios e regiões brasileiras diferentes. Tivemos também experiências distintas para o mesmo tempo de vida. Mas nutrimos, como pai e filho, algumas poucas e fortes paixões comuns. O desenhar, o desfrute da mitologia moderna da cultura de massa, The Beatles e os hits dos anos 1980. A maior paixão herdada por ele ou a minha continuada nele é o Clube Atlético Mineiro. Somos Galo. Ele talvez até mais que eu e o avô juntos. Compartilhamos todos essa fé com alegria.  Obrigado, Glorioso, por mais essa emoção.  

Memórias agarradas

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  Sílvio Ribas Um aluno com a sua pasta pendurada no ombro ruma diariamente pelas trilhas de pedras, terra e cimento do longo trajeto de volta da escola para casa. Ele repete o mesmo caminho, com desvios apenas ocasionais, cruzando ruas, avenidas e descuidados matinhos à beira das calçadas. Dessa caminhada vinham os constantes carrapichos, as pequenas sementes espinhentas que se agarram sem pedir licença nas suas meias, barras da calça e até nos cadarços dos tênis. Nem mesmo os que iam de bicicleta para o lar escapam dos danados, alguns bem escondidos nas dobras das roupas. Este é um retrato de minha infância, pintado na minha memória daqueles saudosos anos 1970 e 1980 de uma pequena, poeirenta e quente Curvelo (MG). Enquanto caminhava nos fins de tarde, observava flores silvestres, borboletas e pés de mamona que acenavam por trás dos muros dos quintais. Só ou com colegas que me acompanhavam até onde dava, nem reparava as plantas que roçam as minhas pernas. Mas, ao chegar d...

Trinca de reis da comunicação

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  Sílvio Ribas Neste fim de semana, com a notícia da morte do publicitário Washington Olivetto, me dei conta de que, em apenas algumas semanas deste 2024, perdi minhas três maiores referências em comunicação social. Com Silvio Santos e Cid Moreira, ele forma a trinca de reis que admirava desde os longínquos tempos da Faculdade de Comunicação da PUC Minas. Lá estudei seus perfis, talentos e façanhas, ainda sem paralelos nos ramos onde cada um atuou. Primeiro a partir para a eternidade, o rei da televisão Silvio Santos é um mito como comunicador e empresário. Criou sua própria rede, seu próprio estilo e sua própria e sua página no coração de gerações de brasileiros. O senhor sorriso e dono dos domingos abriu espaços para inovações e novas estrelas. Divertiu e entrou para o imaginário popular. Insubstituível. Depois foi a vez de se calar para sempre o rei da voz Cid Moreira, o homem do boa noite dito milhares de vezes por décadas a fio a milhões de brasileiros. Depois de ser a cara do...

Anatomia do sertanejo dos Gerais

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Sílvio Ribas O corpo místico do sertanejo dos Gerais reúne partes que somam um todo único e admirável. Vertebrado, curtido e abençoado, ele descreve uma anatomia que espanta e cativa mentes e corações. Tome tento: Morada de ideias fresquinhas e lembranças defumadas, a cabeça do sertanejo não para. Como casinha de João-de-Barro, feita de precisão e persistência, nela vivem pensamentos inquietos, lendas e conselhos. Seus braços são ferramentas de força bruta e ternura, como enxadas que rasgam a terra seca em busca do fértil ventre. São também ripas de cercas ao redor dos afetos, protegendo o seu tronco e o seu sagrado. Quando se erguem, mãos despontam desses membros desatando nós da angústia, como que destocando raízes profundas do chão árido. Calejadas e vigorosas, encontram na dureza da lida a suavidade dos gestos gentis. No peito, um tacho de cobre mistura os ingredientes mais sublimes da vida – amores, esperanças, sonhos. Lá são amassados, aquecidos em alma ardente, crescidos...

Pegadas na areia

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  Sílvio Ribas Quando menino em Curvelo (MG), lá nos anos 1970, numa época em que rádio e conversas na rua eram mensageiros ágeis das novidades, o mundo era outro. Bem diferente.  Sem celulares e conexão online, os textos curtos e populares não chegavam em telinhas cintilantes, mas por meio de cópias mimeografadas, recortes de jornal e anotações caprichadas em cadernos. Eles eram difundidos também em voz alta nas reuniões de família, em eventos sociais e nas missas. Um desses breves escritos que jamais deixou de ressoar na minha cabeça foi o poema “Pegadas na Areia”, de autor desconhecido. Em marcador de livros, santinhos distribuídos na paróquia e quadros de aviso, a história conta o sonho de alguém conversando com Jesus no Céu sobre a sua trajetória na vida terrena, ilustrada por uma caminhada dos dois por uma praia. Aquelas linhas cativaram muita gente.   O desfecho inusitado da narrativa, consagrando a misericórdia divina com uma belíssima metáfora, me pareceu sin...

O ladrão atrás da porta

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Só faltou chamar a SWAT. Naquela tarde quente de sábado, no verão de 1981, a tensão tomou conta da minha casa em Curvelo MG). Pré-adolescente, eu, minha família e amigos vizinhos acreditávamos convictamente que havia um ladrão escondido no banheiro. Um grupo de homens se postou estrategicamente para bloquear a passagem entre o local do suposto foragido e os quartos. Outros ficaram no lado de fora, sob o elevado basculante do banheiro, tentando ver e ouvir movimentações e assistir a tentativa de fuga, captura ou rendição do meliante. Linchamento estava fora da lista. As negociações, contudo, pareciam não avançar. Tião, um amigo forte e corajoso que morava na rua de trás da nossa Sete de Setembro chegou com um ameaçador pedaço de pau – mais especificamente, uma trave de madeira grossa. Ele estava decidido a encarar e deter o ladrão, assim que desse as caras. O clima ficava ainda mais tenso. Estaríamos perto de um psicopata? O incidente começou de maneira bem singela. Ao tentar abri...

O alforge do Jorge

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  Lá para os lados de Gouveia, perto de Curvelo e no rumo de Diamantina, vivia Jorge. Nos distantes anos 1930, o então rapaz de mãos calejadas e coração puro se encantou por Ana Maria. Filha de fazendeiros prósperos, a moça tinha beleza e graça que não passavam despercebidas. O tímido Jorge tomou coragem e começou a cortejá-la com o aval dos pais dela, que viam nele um jovem trabalhador e de bons princípios. Todos os domingos, Jorge vestia sua melhor roupa, montava o cavalo e cruzava as colinas para visitar Aninha depois da missa. O namoro corria bem, com conversas no alpendre e sorrisos trocados à sombra das árvores. A família toda dela gostava do namorado e sempre o recebiam com carinho e hospitalidade. Certa vez, ele foi tomado por uma forte cólica abdominal logo após chegar à fazenda. Com muita educação, pediu licença para sair até a varanda, mas, ao se ver sem penico ou outro recurso, se apressou para improvisar por ali mesmo. Envergonhado, Jorge aliviou-se em um dos alfor...

Peregrinos sem rumo

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  Na época dos antigos, como o meu pai Maurílio gosta de dizer, era comum andarilhos à beira das estradas que ligavam nossa Curvelo (MG) a outras paragens. Eles caminhavam sem pressa e sem destino certo, como folhas levadas pelo vento, compondo paisagens urbanas e rurais. A maioria deles era homens velhos, solitários e desmemoriados, que passavam de cidade em cidade, sustentando-se apenas com o que lhes davam pelo caminho e dormindo em abrigos improvisados — uma varanda oferecida por um fazendeiro, o canto de uma venda ou mesmo sob a abóbada celeste. Um desses peregrinos sem rumo, que cruzavam longas distâncias sem propósito aparente, era o seu Augusto. Pai da minha querida Arminda Marques, que foi como uma segunda mãe para mim, a sua história cruza com a da minha família materna. Arminda era irmã de criação de minha mãe, Meire, e foi ela quem acolheu o seu Augusto quando ele, depois de tanto vagar, resolveu tentar fincar raízes, ainda que provisórias, em um barracão nos fundos d...

Churchill no sertão mineiro

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  Sílvio Ribas No fim da Segunda Guerra Mundial, Curvelo estava em festa. Quando muitos soldados brasileiros voltavam para casa, algumas famílias dessa pequena cidade do sertão mineiro aguardavam ansiosamente os seus. Entre os conterrâneos empolgados estava a Dona Luzia, uma viúva de idade avançada. Ela ansiava com o coração cheio de saudade o retorno do filho mais velho, Geraldo Magela, que havia lutado bravamente na Itália. Famosa por sua simpatia e teimosia, Luzia chegou à estação ferroviária cedo, bem antes da hora do almoço, determinada a garantir um bom lugar para ver o seu primogênito desembarcar no horário previsto, começo da tarde. Com a filha mais nova, Clarinha, ao lado, ela se acomodou em um banco de madeira, de onde podia observar de perto os trilhos que davam em Belo Horizonte. Enquanto a velha mãe contava os minutos faltantes da sua longa espera, algo inusitado ocorria lá no trem que trazia Geraldo. Em um dos primeiros vagões, um senhor idoso e obeso, conhecido...

A Serra do Rola-Véia

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Sílvio Ribas No início do século 20, a tropa de burros seguia seu trajeto regular de centenas de rudes quilômetros entre as cidades de Itabira e Diamantina, transportando os produtos da vida quotidiana nas Minas Gerais: rapaduras, farinhas, rolos de fumo, toucinho, querosene de lamparina, entre outros. Mas, naquela rota havia uma carga especial: a mais velha freira do centenário Convento de Macaúbas, em Santa Luzia. A religiosa, muito adoentada, desejava rever a sua família em Curvelo antes de partir deste mundo. Como não conseguia se sentar adequadamente na cela de mulheres, o astuto e experiente mestre dos tropeiros decidiu improvisar. Ele a colocou em um dos balaios da Princesa – a bonitona mula guia do grupo de asnos, conhecida por sua resistência e segurança nos terrenos acidentados. A comitiva avançava devagar, como era costumeiro nos longos caminhos que cruzavam as montanhas e os vales, entrando pelo sertão afora. Em um trecho estreito e sinuoso da travessia bem conhecida da t...

Cacos de memória

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De onde venho, uma cidade quente e empoeirada no coração de Minas Gerais, o orgulho é um sentimento que atravessa gerações. O povo de lá é destemido e cheio de fé. Nós, filhos do Curvelo, temos um apreço especial pelas lembranças que evocam saudade e uma certa vaidade em pertencer a essa terra. Foi o saudoso jornalista Raimundo Martins, conhecido como Diquinho, criador da lendária revista e depois jornal CN, quem me ensinou a usar a expressão: “Perdão pela falta de modéstia, mas sou de Curvelo.” Já se passaram quase 40 anos desde que deixei minha terra natal para desbravar o mundo, mas frequentemente me vejo revisitando, nos campos da memória, os tempos saborosos de infância e adolescência. Como um arqueólogo de mim mesmo, encontro vestígios de lugares, costumes e pessoas, tentando reconstruir a totalidade dessas lembranças com a ajuda de conterrâneos que viveram as mesmas experiências. Gostaria de compartilhar aqui alguns desses fragmentos de memória, esperando que os curvelanos q...

Epopeia iniciada no lombo do carneiro

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Quando eu contava para os amigos que meu avô paterno, Walmiro de Sousa (1913-1985), construiu um império rural no bravio sertão mineiro do século passado a partir do nada, percebia o interesse e a admiração nos olhares deles. Porém, a surpresa era inevitável ao ouvir na sequência que esse empreendedor nato começou seu capital ainda menino, vendendo ovos pelas roças montado em um... carneiro. A reação inicial variava entre o cômico e o curioso, mas, ao refletirem sobre a história, todos concordavam que ela tinha a vocação de um enredo digno de Hollywood. Na fase adulta, sua imagem lembra até a do maior cowboy do cinema, o ator americano John Wayne.  Minha avó paterna, Maria da Conceição Moreira de Sousa (1913-1988), mais conhecida como Dona Sinhá, teve o cuidado de escrever uma biografia abreviada dele logo após sua morte. Temendo que a história de vida de 75 anos de seu amado se perdesse com o tempo, a viúva idosa me entregou seu caderno com a missão de transcrever e editar o rel...

"Aquela bunda me salvou"

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Sílvio Ribas Quem me trouxe esse saboroso e desconhecido episódio da fantástica biografia do antropólogo, etimólogo, educador, escritor e político Darcy Ribeiro (1922-1997) foi o meu amigo Walter Fróes, empresário natural de Patos de Minas. Ele contou o que Darcy, mineiro de Montes Claros, revelou ao Walter Fróes pai, colega de escola na infância e amigo de toda a vida, sobre como sobreviveu pela primeira vez, 23 anos antes de seu encontro fatal com os males causados pelo cigarro. Fumante inveterado desde a adolescência, o genial ex-senador e ex-ministro da Educação estava passando férias em Portugal, em dezembro de 1974, quando descobriu que sofria de câncer pulmonar. Na época, Darcy vivia no exílio em países da América Latina desde 1968 e teve o seu retorno ao país autorizado pelo regime militar. “Imaginavam que eu voltaria para morrer”, disse ele em entrevistas. Tratou-se no Brasil e ficou totalmente curado após ter um dos pulmões extraído. Apesar do sucesso do tratamento, Darcy...

Viagem ao Curralinho de trem

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Mineiro tem uma coisa com trem. É algo tão grande que tudo pode simplesmente ser chamado de trem. Gosto muito de ferrovias e locomotivas, desde quando era menino lá na pequena e empoeirada Curvelo dos anos 1970 e 1980. Foi nas férias escolares de meio de ano em 1978 que vivi uma experiência única e marcante nos trilhos que partiam da minha cidade natal quando ainda transportavam passageiros. Carregada de memórias inesquecíveis e de um sentimento de nostalgia que permanece vivo no meu peito até hoje foi a minha viagem de ida e volta até a vizinha Corinto, cravada nesse mesmo coração das Minas Gerais. Com a companhia sempre agradável de Jorgina, minha outrora babá e irmã adotiva, embarcamos na estação histórica de Curvelo, um lugar que agora é um belo museu cercado de outras edificações relacionadas ao tema ferroviário, que ainda guarda arquiteturas e lembranças douradas daqueles dias. Naquela época, a estrada de ferro ainda servia para integrar cidades, pessoas e negócios, com seu movim...