A sonata perdida


Sílvio Ribas

Lilibeth – para alguns, Bete; para outros, Lili – deixou o Conservatório de Música da UFMG envolta em uma brisa suave que parecia orquestrada pela própria tarde. O sol, meio tímido e fugidio, tingia a Afonso Penna, principal a Avenida de Belo Horizonte, de tons dourados, como se quisesse eternizar aquele instante. 

Lili subiu sozinha na lotação azul da capital mineira ainda absorta nas escalas e melodias que ensaiara durante horas. Seus pensamentos flutuavam, escapando da mente como partituras soltas ao vento. Quando o ônibus cruzou a Getúlio Vargas, algo impalpável, como um acorde inesperado, prendeu-lhe a atenção. 

Entre os sons das buzinas, o murmúrio de conversas dispersas e o chiado das portas, ouviu, nítido e etéreo, um solfejo. Como se alguém, escondido entre a plateia distraída de trabalhadores cansados, donas de casa carregando sacolas e estudantes uniformizados, estivesse sussurrando uma melodia que só Lilibeth poderia identificar. Era um trecho da Sonata para Violino, de Richard Strauss. 

Ela procurou. Varreu o ônibus com os olhos, sondando cada rosto, cada expressão, cada boca semicerrada que pudesse esconder o misterioso musicista. Mas quem poderia ser? As notas vinham de algum lugar indefinido, ecoando e desaparecendo no ar pesado do entardecer. Fez menção de levantar-se, mas hesitou. Sabia que, em mais um minuto, a porta fecharia, e com ela, um paraíso desconhecido, uma promessa de algo indefinidamente bonito e inatingível.

Lilibeth percebeu a estranha ironia — poderia ela estar destinada a flutuar entre os outros, sem nunca ancorar em coração algum. Lembrou-se da sensação de vertigem do amor como veneno, um redemoinho que poderia consumir tudo que ela era, se apenas se deixasse levar.

As portas, de fato, se fecharam, mas não sem antes deixarem escapar um último sopro daquela melodia de Strauss, carregando-a com a leveza de um adeus que não se deseja dar. Por um segundo, ela viu-se diante do que poderia ser o limbo das memórias perdidas, de amores não vividos e destinos que se desencontram por um breve piscar de olhos. O solfejo, agora ausente, levava consigo um desconhecido esbelto jovem de óculos e mochila surrada nas costas. Restou-lhe um eco na mente, abrindo nela a saudade de algo que nunca chegara a ter.

Sempre doce como a flauta que toca, Lili sabia, sem saber, que, se tivesse um instante a mais, se aquela porta tivesse demorado apenas um minuto para se fechar, ela teria se apaixonado. Para sempre.


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