Se o pinguim da geladeira falasse

Sílvio Ribas

Lá estava ele, imponente, sobre a geladeira branca Electrolux de Arminda. O pequeno pinguim de porcelana parecia vivo, observando e ouvindo tudo. De seu trono gelado na cozinha, ele era espectador privilegiado do povo que circulava na velha pensão no centro de Curvelo (MG), uma casa repleta de histórias e afetos.

Na sala de TV, o tique-taque do velho relógio de parede parecia dar ritmo aos dias, como um coração marcando o tempo. Do canto da cozinha, o pinguim também ouvia as conversas arrastadas de minhas tias-avós, cheias de lembranças de antigamente, que mais pareciam contos tirados de livros consagrados. 

Aquele pássaro elegante que não sabia voar, tachado de símbolo brega, queria mesmo era acompanhar o terço das hóspedes, rezado nos quartos. Essas vozes devotadas ainda ecoam na minha memória como cânticos. Mas, por cima, o simpático artigo de decoração sondava o vaivém no generoso lar de Arminda.

Na cozinha, o pinguim era testemunha das delícias que se aqueciam no grande fogão a lenha. Panelas de pressão com feijoadas perfumadas, doces de figo borbulhavam no tacho de cobre, biscoitos de polvilho dourados e, na bancada de mármore ao lado, mãos experientes cortavam couve em fios fininhos, fininhos. 

O pinguim se solidarizava com o trabalho das cozinheiras, sempre atarefadas, mas ainda se orgulhava da companhia do velho filtro de pedra, uma peça monumental vinda da farmácia do tio Jota, com seu véu de rendinhas, como uma rotunda noiva. Minha mãe gostava de frisar a eficiência daquele patrimônio.

Mais adiante, o pinguim admirava o banco de madeira, polido pelo tempo e pela prosa dos velhos senhores e doces senhoras que nele pousavam. Eles debulhavam sem pressa as suas lembranças, relembrando juventudes, ancestralidades e destinos que nunca se realizaram. A saudade continua sentada em muito lugar.

Do alto de seu posto, o pinguim também podia avistar o velho muro de tijolos vermelhos do corredor interno da pensão, coberto de musgo tão verde e espesso que guardava o segredo de uma umidade inexplicável, até mesmo nas tardes mais secas do sertão. Quantas vezes passei por ali, na feliz travessia de cozinha e quintal.

A ironia de um habitante do Polo Sul naquele cenário tão mineiro não passava despercebida. Mas o pinguim se sentia em casa. O clima daquele entreposto de vidas e sonhos cruzados faria até a Antártida um lugar aconchegante. O objeto preto e branco fazia parte da minha infância colorida por sabores, risos e carinhos.

O pinguim estava no rol dos itens nostálgicos, junto com a galinha Maggi, que botava ovinhos como mágica; com o arguto galinho que mudava de cor conforme as condições atmosféricas; com a estrela-do-mar pendurada na despensa; e até com a gravura de um pequinês altivo no colo de uma dama do século 18. 

Guardião silencioso de um tempo cada vez mais distante, o pinguim da geladeira, se falasse, preferiria continuar calado, só ouvindo, observando e mantendo vivas nele e nos outros as coisas que nunca deveriam ser esquecidas. Boa noite, amiguinho. Boa noite, Arminda. Fiquem com Deus. Luz apagada.



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