A Serra do Rola-Véia


Sílvio Ribas

No início do século 20, a tropa de burros seguia seu trajeto regular de centenas de rudes quilômetros entre as cidades de Itabira e Diamantina, transportando os produtos da vida quotidiana nas Minas Gerais: rapaduras, farinhas, rolos de fumo, toucinho, querosene de lamparina, entre outros. Mas, naquela rota havia uma carga especial: a mais velha freira do centenário Convento de Macaúbas, em Santa Luzia.

A religiosa, muito adoentada, desejava rever a sua família em Curvelo antes de partir deste mundo. Como não conseguia se sentar adequadamente na cela de mulheres, o astuto e experiente mestre dos tropeiros decidiu improvisar. Ele a colocou em um dos balaios da Princesa – a bonitona mula guia do grupo de asnos, conhecida por sua resistência e segurança nos terrenos acidentados.

A comitiva avançava devagar, como era costumeiro nos longos caminhos que cruzavam as montanhas e os vales, entrando pelo sertão afora. Em um trecho estreito e sinuoso da travessia bem conhecida da tropa guiada com destreza de ofício, o inesperado ocorreu. Ao pisar em falso sobre uma pedra lisa na beirada da serra, a madrinha Princesa escorregou. Em um piscar de olhos, o animal e a idosa despencaram serra abaixo, rolando e rolando ribanceira, por uns 50 metros.

Desesperados, os tropeiros largaram suas posições e correram para socorrer a velhinha, já esperando pelo pior. A morte não tão corriqueira naquelas paragens, parecia inevitável. Quando chegaram ao fundo do barranco, avistaram a mula, imóvel, com o pescoço quebrado. Sabiam que o destino havia cobrado seu preço. Com o coração pesado, abriram lentamente o cesto de palha trançada que servia de assento e aposento à passageira, tomando todo o cuidado, como se fossem remover a lápide do sepulcro de uma santa.

Para a surpresa de todos, lá estava a irmã Carlota, intocada e serena, ainda debulhando o terço com concentração fervorosa. Seus lábios moviam-se em uma oração silenciosa, como se estivesse em transe. Ao perceber a presença dos homens, levantou os olhos com tranquilidade e perguntou, com a voz levemente rouca, se já tinham chegado ao destino. Agradeceu a Deus pela jornada ter transcorrido em paz e com rapidez.

Os tropeiros, boquiabertos, caíram de joelhos ao redor dela, levantando as mãos e os olhos para os céus, glorificando a Deus e agradecendo a intercessão de Nossa Senhora da Conceição. O milagre que presenciaram parecia algo saído dos relatos mais antigos dos grotões mineiros, onde o sagrado e o profano se encontravam em cada curva de estrada.

A freirinha frágil, ainda enrolada em seu invólucro rústico, ergueu as sobrancelhas finas e enrugadas, perturbada pela algazarra repentina. Com um tom de leve irritação, reclamou: "Ave! Me fizeram perder o ponto do rosário onde estava!" E assim, com a simplicidade e a fé que a definiam, voltou à sua prece, enquanto os tropeiros, ainda em estado de graça, retomaram a viagem, agora cientes de que carregavam mais do que apenas mercadorias — eram testemunhas da glória divina nas trilhas das Gerais. A parada da religiosa no Céu ficou para bem depois. 


PS: Esta história é adaptada a partir do que ouvi ainda menino de minha mãe, lá em Curvelo.
 

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