Cacos de memória


De onde venho, uma cidade quente e empoeirada no coração de Minas Gerais, o orgulho é um sentimento que atravessa gerações. O povo de lá é destemido e cheio de fé. Nós, filhos do Curvelo, temos um apreço especial pelas lembranças que evocam saudade e uma certa vaidade em pertencer a essa terra. Foi o saudoso jornalista Raimundo Martins, conhecido como Diquinho, criador da lendária revista e depois jornal CN, quem me ensinou a usar a expressão: “Perdão pela falta de modéstia, mas sou de Curvelo.”

Já se passaram quase 40 anos desde que deixei minha terra natal para desbravar o mundo, mas frequentemente me vejo revisitando, nos campos da memória, os tempos saborosos de infância e adolescência. Como um arqueólogo de mim mesmo, encontro vestígios de lugares, costumes e pessoas, tentando reconstruir a totalidade dessas lembranças com a ajuda de conterrâneos que viveram as mesmas experiências.

Gostaria de compartilhar aqui alguns desses fragmentos de memória, esperando que os curvelanos que me leem possam ajudar a completar esse mosaico. Recordo-me de um senhor idoso que parava o seu caminhão carregado de laranjas na fábrica de gelo de José Ramos, na Rua Sete de Setembro. Eu me lembro de chupar as frutas ali mesmo, depois que ele as descascava numa máquina de manivela e, com a habilidade de quem fazia isso há anos, as “destampava” com uma faca. Mas, como é ele que ele se chamava mesmo?

Também me vem à mente a figura de um padre bonachão, distribuindo balas da marca local Sertaneja para as crianças que brincavam na Praça da Matriz, mergulhando suas mãos generosas nos bolsos profundos de sua batina. Seria Padre Paulo Vicente, Cônego Garcia, ou outro? E aquele carrinho, sempre estacionado na porta do Cine Virgínia antes e depois das sessões, vendendo amendoim caramelado em tubos de papel... Quem era o vendedor? Ele também vendia pipoca?

Lembro ainda do dia em que Curvelo recebeu uma tocha olímpica nos anos 1970, que foi passada de mão em mão por estudantes até a saída da cidade. Quando foi isso? Qual era a ocasião? Na memória, surgem também os vendedores de enciclopédias e revistas que, de tempos em tempos, vinham de São Paulo – Barsa, revista adventista Amiguinho, Família Cristã... Havia mais alguma? Quem era aquele cara magro de óculos que apareceu por anos a fio nas renovações de assinatura?

As festas de São Geraldo, com o bate-bate, a roda gigante e o sombrero mexicano, eram eventos esperados o ano todo. E as maçãs do amor, que vinham da Argentina, eram um verdadeiro deleite. O que mais tinha lá de bom? E o cheiro forte que a fábrica de álcool de mandioca lançava no começo da noite? Seria algum tipo de descarte?

Lembro de Curvelo aparecer na TV, numa reportagem da Globo sobre o marco do Centro de Minas ao lado da Igreja do Timbira, com o experiente repórter João Carlos Amaral. E da cobertura que a Band fez de um Carnaval de rua, com o jornalista esportivo Flávio Carvalho. Que tempos bons aqueles!

São tantas recordações incompletas, cada uma evocada por um fragmento, que almejo elementos reveladores para nelas serem encaixadas e, assim, formar um todo completo e nostálgico. Quem mais tem algo para acrescentar ou corrigir nessa arqueologia de memórias?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crise antevista

Jato da Mulher-Maravilha: nada a ver

Guerra fiscal