Rimas e sinas do Curvelo



 


Sílvio Ribas

"Prazer em revê-lo em Curvelo." A frase, dita com leveza pelo amigo Léo Cunha quando o recepcionei na minha terra natal, em um longínquo dia de 1991, carregava tanto uma missão quanto um prazer da rima. O escritor guardou-a zelosamente por anos, à espera do encontro de lugar e ocasião certos para resgatá-la. Naquela cidade quente e poeirenta do sertão mineiro, que me viu nascer e amadurecer, suas palavras transformaram-se, naquele instante, não apenas em destino, mas também numa suave melodia para os meus orgulhosos ouvidos.

Ao longo dessas décadas, passei a testar novas rimas e sinas a partir do peculiar nome do meu município: desvelo, cotovelo, novelo, demovê-lo... Era como se cada vernáculo usado revelasse algo mágico emergido na confusão do cotidiano. Até marcas de produtos ou estabelecimentos comerciais evocavam elos com o "vêlo". Forçando um pouquinho, até a aguardente José Cuervo, o magazine Riachuelo e a sapataria Corello, criavam para mim falsas sensações de proximidade, tais como mimos do baú das licenças poéticas.

No meu torrão das Gerais, já surgiram curiosas variações linguísticas inspiradas em Curvelo, como Curvel, a concessionária local da Fiat, ou, mais recentemente, o intrépido personagem literário Zé Curvelindo, criação de Geraldo Farias. A sonoridade singular e os significados ocultos parecem se querer para oferecer infinitas possibilidades semânticas. Um dia ainda verei coisa ou lugar batizado de Curvelocidade, em homenagem ao promissor Autódromo dos Cristais, símbolo de altas octanagens. Ou o trem-bala Curbêlo, ligando suas coordenadas à capital.

E as pessoas ungidas por curvelanidades? Além dos cidadãos nativos ou honorários, cujos documentos ou títulos os vinculam ao coração geográfico de Minas, há aqueles com os sobrenomes Curvelo, Corvelo e Curvelano (com um ou dois eles). Todos carregam consigo histórias e um profundo senso de pertencimento. Essas denominações vão além de texto e som, pois abundam conexões.

Foi nessa toada que me deparei com o intrigante testemunho do talentoso cantor e compositor paulista Renato Teixeira. Em uma entrevista, ele revelou que a canção Curvelo nasceu de uma associação espontânea que fez com a palavra “curva”. Chegou a pensar que fosse um diminutivo, algo como “curvazinha”, pintando na mente a imagem de uma dobra na estrada. 

A singeleza dessa visão me transportou para as reações que a placa do velho meu Palio – registrado em Curvelo – despertava pelos diferentes cantos do Brasil, sobretudo durante os períodos em que vivi em Floripa, São Paulo e Belo Horizonte.

Recordo de um lavador de carros em Sampa, natural da vizinha Corinto (MG), que, ao notar a origem do meu veículo, comentou: “Esse aí é um lugar de gente brava.” Em outra ocasião, após uma leve colisão em BH, um desconhecido, ao ver minha placa, me cumprimentou animado, revelando ser também “de lá”. É fascinante como uma simples coincidência pode disparar o gatilho para prosas, lembranças e até inesperado chamado de confraria.

Fascinado pela etimologia de Curvelo, mergulhei em décadas de pesquisa e descobri uma conexão inesperada: o nome remonta ao gentílico da Ilha do Corvo, no arquipélago dos Açores. Esse pequeno pedaço de terra perdido no Atlântico Norte, distante da Europa, teria sido o berço dos ancestrais do padre que, séculos atrás, fundou minha cidade no coração do Brasil colonial.

O corvo, ave envolta em maus presságios e mistérios fascinantes, foi imortalizado no célebre poema O Corvo (1845), do genial Edgar Allan Poe (1809–1849). Por aqui, porém, essa figura alada adquiriu outras acepções. Símbolo de memória prodigiosa, inteligência animal e arauto de mensagens indesejadas, o negro penado talvez reflita o espírito daqueles que, como nós, nunca esquecem suas raízes. “Nunca mais”, repetiria ele.

Curvelo não é, pois, apenas nome de cidade, sobrenome, adjetivo pátrio e construção poética. É também um novelo de episódios, um cotovelo dolorido, um eterno “revê-lo” e o gralhar de um pássaro místico. Tudo isso instiga o encanto de pertencer aos seus recantos e da aventura de dobrar cada curvinha da sua estrada. Vale um conto e 100. "Prazer em comovê-lo", retrucaria Léo Cunha.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crise antevista

Guerra fiscal

Jato da Mulher-Maravilha: nada a ver