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Mostrando postagens de 2025

Geraldo & Antônio, uma dupla santa

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Sílvio Ribas Falar de Curvelo (MG) é, inevitavelmente, evocar São Geraldo. O santo, tão ligado à cidade, empresta seu nome à majestosa basílica dela, à fé de milhares de devotos e ao fluxo incessante de romeiros vindos de todos os cantos do Brasil — e até do exterior. A presença de São Geraldo está entranhada na cultura e na alma dos curvelanos, muitos dos quais batizados de Geraldo ou Geralda, como bênção familiar. Mas há um curioso detalhe que nutre o mistério espiritual de Curvelo: o padroeiro oficial do município é outro santo, o português Santo Antônio, igualmente milagreiro, cujo nome era também o do padre Corvello, fundador da cidade e devoto fervoroso do franciscano lisboeta. Assim, a cidade tem por protetores dois santos que, embora distintos, parecem dividir o mesmo altar da devoção popular — uma dupla celestial que rende episódios saborosos. Não foram poucos os visitantes ilustres que se confundiram com essa duplicidade. Recordo o então presidenciável Geraldo Alckmin, em 200...

1980s, a década prometida

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Os anos 1980 acabaram há 35 anos, mas continuam vivos em corações e algoritmos. Para quem os viveu, como eu, a lembrança vem com um brilho de orgulho. Era o tempo do inédito, da ousadia, da trilha sonora inesquecível. O curioso é ver adolescentes de hoje, como o meu filho, que nunca giraram uma fita cassete, se encantarem por sintetizadores, jaquetas coloridas e cabelos armados como se descobrissem um tesouro. Talvez seja a prova de que aquela década foi mesmo especial — uma era de autenticidade e de rebeldia criativa que falta ao presente. Em tempos de telas frias e comportamentos pasteurizados, os eighties seguem reluzindo como um refúgio vibrante. A internet virou o novo túnel do tempo, onde os nostálgicos e os curiosos mineram clipes, filmes e estilos, reconstruindo o passado com filtros e pixels. E agora, com a ajuda da inteligência artificial (IA), esse revival ganha contornos quase mágicos: cenários recriados, personagens renascidos, convites digitais para viagens “de volta ...

A sabedoria do velho digitador

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Sílvio Ribas Saquei nova metáfora para uma lição de vida me dada pelo meu mestre João Camilo Penna, que ele ilustrou com a figura do velho tropeiro que equilibra lembrança e esperança em dois alforjes dispostos cada um de um lado, enquanto faz a viagem da vida no lombo do burro. O segredo é sempre tirar recordações pesadas de um e repor aspirações no outro. A analogia modernizada que proponho é do velho digitador, sentado dia nte de uma mesa de trabalho. No centro dela, repousa o PC, computador pessoal — ferramenta e espelho da mente. À esquerda, a fragmentadora, para desintegrar os rancores acumulados. E à direita, a impressora, sempre pronta a materializar novos e ousados projetos. Esse arranjo seria a nova viagem do viajante da era digital. O balanço do cavaleiro de outrora se traduziria agora na harmonia do operador do teclado. À esquerda, o depósito do que deve ser triturado e esquecido: dores, frustrações e culpas que pesam na consciência. À direita, as esperanças impressas, ...

Nossas samambaias choronas

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  A jardinagem nunca me seduziu, mas o passar das décadas tratou de colorir minha memória afetiva com o seu verde mais íntimo, plantado lá na infância. Hoje, ao relembrar de casas e quintais do meu Curvelo (MG), evoco plantas daqueles lentos 1970s e 1980s, que reinavam em cantinhos de frescor e ternura. Quando menino, a flora caseira era companheira constante. Minha família, como tantas da cidade, enfeitava salas e varandas com vasos de todos os tamanhos, onde flores e folhagens compunham cenários de acolhimento. Entre todas, sobressaíam as cascatas de folhas das samambaias choronas . Pendendo como lágrimas no cair das tardes, as choronas apreciavam a sombra e a umidade. Havia sempre mãos a lhes borrifar água, como quem acaricia um ser de estimação. Elas se multiplicavam em suportes de ferro e em xaxins , cujo nome engraçado jamais esqueci: uma senha da meninice. Eu via nesses aparadores metálicos esqueletos de robôs guardiões de uma ruína maia. Ao lado deles, havia ainda out...

Reflexões outonais

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  Sílvio Ribas No dia em que escrevo este texto, 11 de outubro de 2025, um sábado, constato ter vivido 20.387 dias — o equivalente a 489.288 horas, 29.357.280 minutos ou 1.761.436.800 segundos. Tantos instantes, somados e diluídos em quase 56 anos, compõem uma existência em plena curva de maturação, num ponto em que o tempo já não se mede só pelo que se vive, mas pelo que ainda se pode fazer valer. Ao dividir a vida em três etapas de aproximadamente 27 anos — número que, não por acaso, marcou a partida precoce de tantos ídolos — percebo-me adentrando o último terço da jornada. É o território dos “finalmentes”, como diria um poeta mineiro, mas ainda fértil para semear novos sonhos e projetos. O ideal teria sido colher em abundância o que se plantou nas fases anteriores, mas o outono, ainda que tardio, também é tempo de colheita. A diferença é que o fruto já vem acompanhado de reflexão e moderação, e o prazer de saboreá-lo se mistura à consciência de que as estações não são i...

A urgência de viver

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Sílvio Ribas A consciência da finitude é talvez o ponto de partida mais radical e, ao mesmo tempo, mais libertador da filosofia. Desde o nascimento, cada ser humano carrega uma expectativa íntima: viver o máximo possível, de preferência com saúde, dignidade e em uma velhice serena. No entanto, a única certeza implacável é a de que a vida, mais cedo ou mais tarde, encontrará seu fim. Esse contraste entre desejo e inevitabilidade é o que molda a nossa condição existencial. Os filósofos estoicos ensinaram que a morte não é inimiga, m as conselheira silenciosa. Longe de ser causa de paralisia ou medo, o reconhecimento da finitude é estímulo para o essencial. A cada instante, a lembrança de que somos passageiros nos liberta das distrações banais e nos convoca a viver com intensidade. O tempo, percebido como limitado, deixa de ser desperdiçável e se torna sagrado. É nesse ponto que a finitude se converte em urgência. Urgência de amar sem reservas, de cultivar amizades genuínas, de realizar p...

Volta ao pátio da escola

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  Dizem que não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes, sobretudo depois de muito tempo afastados dele. O risco da decepção é grande: paredes reformadas, espaços reinventados, pessoas ausentes. Melhor, então, deixar guardado o velho encantamento intacto, como quem conserva um relicário. Ainda assim, resolvi revisitar um desses recantos. Não fisicamente, mas pelas janelas das redes sociais, onde surgem fotos antigas e recentes. Ao ver as imagens, a memória fez chamada em voz alta, presenteando-me com a vibração de décadas passadas, quando a campainha soava para o recreio. O pátio da Escola Interventor Alcides Lins era o oásis pulsante dos nossos dias de estudante de primeiro grau. Nele, filas se formavam para entrar e sair, mas era sobretudo o palco da liberdade que tínhamos naquele nosso segundo lar na Curvelo (MG) quente e poeirenta dos anos 1970 e 1980. Cada apelido, cada jeito de andar, cada risada alta era uma marca registrada da garotada. E naquele grande tablado de ...

Resistência fashion

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Na Curvelo (MG) onde nasci e morei, nas décadas de 1970 e 1980, o jeito do povo se vestir nem sempre era ditado por vitrines chiques ou revistas de moda, mas pelo cotidiano de uma gente trabalhadora, em boa parte de origem rural. Era um tempo em que aparência rimava com necessidade, sem deixar de exibir dignidade. As senhoras de menor renda usavam lenços cobrindo a cabeça, vestidos de tecido básico e sandálias de borracha ou couro. Muitas iam às feiras e às igrejas com mãos calejadas carregando sacolas de pano ou cestas de palha. Havia na vaidade delas o estilo sertanejo raiz, marcado por praticidade e austeridade. Os homens circulavam com camisas de botão de manga curta, calças de corte reto e cintos baratos. Alguns exibiam chapéu de feltro, outros se adaptavam aos bonés que já começavam a se popularizar. Para caminhar por ruas, becos e avenidas de pedra ou terra, o calçado podia ser sapato gasto ou chinelo ou mesmo nenhum. Jovens e adultos se deslocavam de bicicleta, com a barra ...

A humanidade dos cães

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Sílvio Ribas  É um paradoxo. Se o melhor amigo do homem pudesse falar, talvez dissesse: “esses humanos são desumanos”. Foram os cães a primeira espécie animal lançada ao espaço e, muito provavelmente, serão também os únicos, além dos próprios homo sapiens , a seguir com eles rumo às estrelas, quando a saída da Terra estiver aberta em busca de novos lares no Cosmo. Enquanto isso não acontece, nossa convivência diária com esses seres terrestres de quatro patas deveria ser um atestado do que nos falta para sermos mais nobres, como a maioria deles é. A fidelidade canina é quase impossível de replicar entre nós. O carinho, a atenção e a tolerância da maioria das raças para conosco são tão cativantes que deveriam servir de modelo, sobretudo no trato com os mais frágeis — crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência. Confesso que só despertei para a companhia e a interação com os cachorros já na vida adulta, apresentado a eles por minha companheira e cultivado em família. Toby, ...

Um idioma mineiro

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Sílvio Ribas Eleito o sotaque mais bonito do Brasil, o jeito mineiro de falar guarda mais do que uma sonoridade simpática: é um patrimônio afetivo e cultural. O mineirês se revela em gírias, neologismos e significados próprios para palavras comuns, transformando o português falado em Minas Gerais em um território linguístico único. “Arredar” não é só verbo de dicionário, mas ato cotidiano; “trem” pode ser qualquer coisa, de uma xícara a um problema; e “uai”, interjeição identitária, é senha de pertencimento. Esse dialeto, que nasceu da mistura entre o português europeu, os falares africanos e indígenas e o isolamento geográfico de várias regiões, preserva arcaísmos que sumiram em outras partes do Brasil. Verbos como “assuntar” (prestar atenção) e “despautério” (desatino) ainda circulam em conversas ou aparecem em textos literários. Ao mesmo tempo, surgem pérolas modernas, como o uso criativo de “agarrado” para designar alguém ocupado ou enrolado. Com a força das redes sociais, o mi...

O papel roxo da maçã

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Na minha sertaneja Curvelo (MG) dos distantes anos 1970 e 1980, cada detalhe da vida cotidiana parecia querer contar algo superior, que merecia ser notado e louvado. Por isso, a chegada de algo novo na cidade virava logo um acontecimento para a nossa gente. As maçãs argentinas, por exemplo, vinham do importador de Belo Horizonte como pequenos tesouros embalados no mistério de um mundo bem mais vasto e elegante do que o nosso atual. O aroma doce que se desprendia delas anunciava prazer reservado às ocasiões especiais. A sensação de fresca novidade que pousava na geladeira ou na cesta da cozinha, antes mesmo de as frutas serem desembrulhadas, não perecem na memória. Essas maçãs eram diferentes de tudo que se colhia nos quintais e sítios. Brilhavam como se polidas à mão, cada uma cuidadosamente protegida pelo sublime papel de seda roxo. Para nós, crianças, o invólucro parecia manto de nobreza e a cor da paixão. Por isso, tinha algo quase cerimonial em descobri-las — um gesto lento, ...

A magia da fonte luminosa de Curvelo

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 Sílvio Ribas Por muitos anos, as noites de domingo em Curvelo (MG) presenteavam os moradores com um espetáculo encantador. Na Praça Benedito Valadares, a fonte luminosa transformava água, luz e música em ritual coletivo e poético. Crianças maravilhadas, casais apaixonados e famílias inteiras se punham ao redor do balé de jatos coloridos, embalados por trilhas sonoras também inesquecíveis. Todos éramos testemunhas da tecnologia à serviço da beleza. Cercada por 16 colunas inclinadas de pedra bruta — que, diziam, evocar doces pé-de-moleque —, a fonte pulsava vida e harmonia. Essa mandala era observada por uma majestosa coluna coríntia em pedra polida. Toda vez que vejo fontes luminosas em outras partes do mundo, é inevitável relembrar da nossa. Os jatos altos e reluzentes dançando ao som da música — tudo me remete à magia que brotava na área central da minha cidade. Naqueles longínquos anos 1970 e 1980, a fonte luminosa de Curvelo era mais que um suntuoso equipamento urbano...

Orgulho geodésico

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  Sílvio Ribas   O mapa do tesouro da mineiridade marca um X no solo de Curvelo (MG). Por décadas, os filhos e amigos da cidade souberam para onde apontar quando falavam do “centro geodésico” do estado. Ao lado direito da entrada da Igreja da Imaculada Conceição, no bairro Tibira, havia um bloco de concreto que indicava um especial ponto de Minas Gerais estudado por geógrafos, agrimensores e cartógrafos. Aquele dado técnico era também patrimônio dos curvelanos, cultivado com fervor. A marca simples, que poucos olhos de fora notavam, estava bem guardada na memória daquela gente e a enchia de orgulho. O ponto de convergência do grande território mineiro virou reportagem na TV e publicidade da Prefeitura e do comércio local. Poética e oficialmente, o município adotou a alcunha de coração do estado. O tempo passou e o marco provisório deu lugar a um monumento mais elaborado, de traço moderno, dividido com o jardim lateral da igreja. Com arco e setas, o símbolo novo visav...

A vida não cabe num prompt

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Sílvio Ribas A última cena de Inteligência Artificial (Artificial Intelligence: AI,  2001), dirigido pelo genial Steven Spielberg, é uma daquelas que ficam conosco — não só pela beleza, mas pelo comichão existencial que produz. O mundo humano se extinguiu há milênios. Tudo o que restou foi um menino-robô, testemunha solitária da fragilidade e da grandeza do que fomos. À sua frente, uma forma avançada e alienígena de inteligência tenta compreender a espécie que desapareceu. Coube à IA  exalar aquilo que foi humanidade. Essa imagem ficcional nos remete à realidade do presente. Desde 2024, assistimos à expansão acelerada da IA no cotidiano com espantosa naturalidade. Abrimos as portas de nossas casas, corações e mentes às máquinas que aprendem, simulam e respondem com rapidez inquietante e cada vez mais precisão. Passamos a conviver com textos, imagens e vozes que não vêm de seres vivos, mas de comandos — prompts, como se convencionou chamar. E quando o mundo começa a ser de...

A velha estação e seus presidentes

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Sílvio Ribas Em só duas ocasiões, ambas devotadas aos trilhos, Curvelo recepcionou a maior autoridade do país. Separados por quase um século, os presidentes Rodrigues Alves e Fernando Henrique Cardoso (FHC) honraram a cidade mineira com as suas presenças. O primeiro veio para pré-inaugurar a velha estação ferroviária, em 1904, e o outro, para aposentá-la de vez, em 1997. Foram nos 93 anos que separam as breves visitas presidenciais que aquele município sertanejo encenou o vai-e-vem de pessoas, mercadorias e sonhos pela via férrea. Embarcados na mesma locomotiva histórica, os chefes do Executivo prometeram ao povo dias melhores para o Brasil. Depois deles, a retirada dos trilhos da zona urbana moldou paisagens e negócios. Em 3 de julho de 1997, FHC desfilou de trem por oito quilômetros para inaugurar o novo trecho da linha e a nova estação. Moradores emocionados lançaram flores sobre a composição. Em discurso, o presidente recordou que a remoção da linha do centro da cidade era an...