Santo Antônio: um rio à margem
As histórias de muitas cidades começam à beira de um rio. Em Curvelo (MG), não foi diferente: o nascimento urbano se deu junto ao Ribeirão Santo Antônio. Ainda assim, para mim, ele sempre foi um estranho íntimo, presente e ausente ao mesmo tempo, alguém que correu ao lado da minha vida sem jamais ser devidamente apresentado, apesar da proximidade insistente de suas margens silenciosas.
A imagem mais nítida que guardo desse personagem oculto é a curva que ele desenha ao contornar o Hospital Santo Antônio, exatamente onde nasci, no fim do
s agora distantes anos 1960. O “rio” da cidade acabou reduzido a referência de esgoto a céu aberto, trecho temido por doenças, esconderijo de marginais e até palco de assombrações sussurradas.
O ribeirão esteve sempre ali, a poucas ruas da casa onde cresci, cruzando a BR-135 e depois a 259, passando rente ao velho hospital e seguindo até o bairro Bandeirantes. Um fio d’água persistente, quase invisível, que atravessava a cidade enquanto nós atravessávamos a infância sem notá-lo de verdade.
Constrange-me perceber que ignorei, por toda a meninice e adolescência, a principal fonte natural de água da minha terra. Agora, quando o ribeirão definha e ameaça desaparecer, tento resgatá-lo na memória. Lembro-me mais do Rio das Velhas, do Paraúna e do Picão, com suas pescarias, borrachudos e lavadeiras das cidades vizinhas.
Afluente do Rio das Velhas, o Santo Antônio está ligado à própria origem de Curvelo. Por volta de 1700, desbravadores usavam suas margens como pouso no trajeto entre as capitanias da Bahia, Pernambuco e São Vicente. Ali, em torno de uma capela erguida pelo padre Antônio Corvello de Ávila, nasceu o primeiro núcleo urbano da cidade.
Hoje, parte da bacia do Rio das Velhas, o Santo Antônio apresenta baixa qualidade de água e vazão insuficiente. A dificuldade de diluir os efluentes da Estação de Tratamento de Esgoto agrava a poluição, enquanto relatos de despejo ilegal transformam trechos do afluente em canais repugnantes, afastados de qualquer ideia de paisagem.
O contador de causos Geraldo Faria recorda que, nos tempos de Zé Curvelindo, corria a lenda de lobisomens sob os pés de araticum, perto da Ponte do Leão, à meia-noite da Sexta-Feira da Paixão. Ele e os amigos iam armados de espingardinhas e lanche, mas sempre iam embora antes do escuro.
Lembro também de um francês, casado com uma curvelana, que quis conhecer o rio da cidade. Perguntava se podia caminhar por suas beiras, sentar num banco, pescar ou deitar na relva. Quando chegou, passou horas contemplando um cenário medíocre, atirando pedrinhas no leito sujo, mais atento do que qualquer morador.
Há cidades que não se explicam sem o rio que as atravessa. Ele é mais que geografia: é origem, sustento e memória. Por suas margens nasceram feiras, lavouras e histórias repetidas, ensinando o ritmo do trabalho, a paciência das cheias e a prudência das estiagens ao longo do tempo.
Mas o vínculo vai além da economia. O rio é paisagem afetiva, espelho do céu, trilha de infância e cenário de silêncios. Mesmo enfraquecido, continua correndo por dentro da cidade como lembrança persistente de que a vida, como a água, só segue adiante porque não deixa de fluir. Este, porém, nunca foi o nosso.

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