Inversão de papéis

Sílvio Ribas Brasil e China têm tentado emplacar mudanças de rumo em suas políticas econômicas para viabilizar a transição para um novo modelo, que garanta um crescimento sustentável. O curioso é que esses dois mercados emergentes buscam, aos trancos e barrancos, superar o esgotamento das suas respectivas matrizes com a incorporação de aspectos invejados no outro. Enquanto o governo chinês quer fortalecer a demanda interna para depender menos de sua espetacular máquina exportadora, o Planalto precisa destravar investimentos em infraestrutura e capacidade produtiva para dar competitividade internacional ao país, pois já não mais pode contar com o impulso do consumo. Muito já foi dito sobre a tal complementaridade das economias desses dois países, com expressivos ganhos para ambos os lados em razão da gigante demanda chinesa pelas matérias-primas se casar com a peculiar capacidade do campo e das minas brasileiras em saciá-lo. Essa premissa só seria uma verdade absoluta se o feliz encontro da procura de um e a oferta do outro rendesse lucros para os dois permanentemente. Enquanto o dragão exibir um apetite sem freios pelo minério de ferro e pela soja em grãos, continuaremos nutrindo a ilusão de que vale a pena ser um vagão da locomotiva do mundo. "Para superar suas crises, governos de Brasil e China buscam saídas no modelo econômico do outro" Ocorre que, sem agregar valor ao que exportamos para nosso grande comprador e sem fazer florescer em território nacional uma indústria inovadora e ancorada em custos competitivos, o país acaba acentuando a dependência de ventos favoráveis na relação com o seu principal parceiro nas duas mãos de comércio exterior. Para piorar, o perfil das trocas continua se deteriorando, com manufaturas chinesas tomando lugar das brasileiras, e a desaceleração do gigante asiático se confirmando a cada dia. O crescimento menor já levou a China a anunciar semana passada um relaxamento nos juros bancários. Apesar do gigantesco potencial comprador da segunda maior economia mundial, o seu sucesso ainda está calcado nas suas vendas ao resto do planeta, que deixaram nas últimas semanas provas explícitas de um temido encolhimento. As exportações chinesas caíram 3,1% em junho, o maior recuo desde o fim de 2009, mostrando a fraqueza da economia global. Mesmo assim, as vendas da China para o Brasil no mês passado cresceram 5,1%, após um avanço considerável de 9,3% em maio. O grande receio que surge ao analisar esses números é saber que um reles resfriado do Produto Interno Bruto (PIB) chinês pode levar nossa atividade econômica para a internação. Uma causa indireta e já percebida dessa tendência está na influência decisiva que a demanda chinesa exerce sobre a cotação das estrelas da mineração e da agropecuária na pauta brasileira de exportação. Não à toa nossa balança comercial fechou o primeiro semestre no vermelho, com um deficit de US$ 3 bilhões, pior resultado para o período desde 1995, quando o saldo negativo acumulado foi de US$ 4,2 bilhões. É uma pena porque tivemos pelo menos duas chances de rever os termos dessa tal parceria comercial. As oportunidades ocorreram justamente nas visitas oficiais dos presidentes brasileiro a Pequim, respectivamente em 2009 e 2011. Na primeira, Lula levou na bagagem de volta só a promessa de uma abertura do mercado chinês à carne brasileira. Na última, Dilma queria atrair investimentos e atenuar diferenças de valor entre produtos trocados. Só evitou o esperado fechamento da filial da Embraer. Onda global Enquanto as travessias iniciadas pela China e pelo Brasil para atingir um perfil econômico virtuoso não se completam, todos perderão, sobretudo o lado de cá. A nossa dificuldade cresce quando não conseguimos imprimir velocidade chinesa na nossa reestruturação, justamente no momento em que ciclos favoráveis já estão cerrando as portas. As economias brasileira e mundial vêm se guiando pelas temporadas — ora boas, ora ruins — da conjuntura global. Mas os sinais trágicos do inverno econômico só se confirmam quando correções são adiadas. É isso mesmo. A triste coincidência que vivemos não é apenas a de uma desejada troca de papéis (grande exportador e grande consumidor), mas também de inversão de prioridades (investimento e consumo). E isso tudo quando os respectivos modelos fazem água e o resto do mundo está alagado com a crise até a cintura. Depois de três décadas de crescimento fantástico, na casa de dois dígitos, a China deverá fechar este ano com a pior expansão em 23 anos, em torno de 7%. Não dá mais para ignorar que o mundo de hoje é outro, bem diferente quando torrentes de dólares e comércio global cobriam as imperfeições estruturais de cada economia nacional. As condições que atuaram a favor do crescimento mais vigoroso da economia brasileira, ocorrido de 2004 a 2010 — alta das cotações globais das commodities básicas e fluxo abundante de capitais externos —, começaram a dar marcha à ré. Em outras palavras: começa a ser cobrada a conta pela falta de ações de longo prazo para superar as nossas evidentes fragilidades estruturais, adiadas quando o cenário externo era propício. As rodadas de concessões em infraestrutura não avançaram como o governo gostaria e, de quebra, a piora dos indicadores de inflação e crescimento, além dos sinais intervencionistas dados pela presidente Dilma Rousseff, geraram mais desconfiança dos investidores. Solavancos De volta ao lado chinês, a conversão de uma economia com a metade do tamanho de toda a União Europeia (UE) deixa todos os países do mundo apreensivos. Uma amostra disso ocorreu no fim do ano passado, quando foi celebrada a troca de comando no Partido Comunista da China. O desejado pouso suave do gigante acabou não excluindo solavancos e ainda padece de outros fatores, como a longa estagnação europeia, o atual esforço de reindustrialização dos Estados Unidos e a emocionante mudança na política monetária norte-americana. Para países menos competitivivos e atrelados à exportação de commodities, como o Brasil, a necessidade de a China melhorar sua renda e consumo geram expectativas contraditórias. De um lado, a euforia com a possibilidade de exportar mais alimentos e artigos sofisticados para a Ásia. De outro, o receio que a perda de competitividade, o aumento de custos interno lá e até de inflação piorem as condições gerais do mercado internacional. Fonte: Correio Braziliense de hoje

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