Pasta Joia Review - 30


Passos nus
Ele nasceu e andou de pés descalços pelas seis décadas de vida. Não era voto de pobreza ou religião. Simplesmente nunca quis colocar nada nos pés. Ignorando protocolo, Conrado Fargnoli, mineiro de Curvelo, preferiu ser honesto consigo mesmo e professar em público sua crença: proteger-se com calçados é aceitar uma tortura. Salto alto, então, é suplício da vaidade.
Sandália castiga menos que bota e, ao fim do dia de trabalho, a primeira coisa que se quer é desarrear. A sensação de alívio ao tirar sapatos, sobretudo se apertados, evidencia aversão natural à peça do vestuário. Calçar agride a natureza humana e essa contradição emerge no divã do podólogo.
Muitos buscam o descanso de caminhadas na praia, descalços, deixando pegadas na areia. Outros fazem de chinelos e pantufas terapias. Crente do absurdo de se caminhar pela trilha dos outros, Conrado foi mais longe.
Com os pés nus subiu ao altar e desceu ao túmulo. Ignorava consensos para deixar dez dedos livres. Andou milhares de quilômetros com nervos à flor da terra, em todo tipo de superfície. Pôs o mundo inteiro a seus pés.
Conrado ergueu patrimônio, criou filhos e ganhou respeito sem deixar de ter a alma repleta de chão. Comungava do costume indígena e da humildade do homem de Nazaré na cerimônia do lava-pés. Sem sequer usar meia, não exibia sujeira ou ferida. Só incomodava mentes ultraconservadoras.
Certa vez, um gerente de banco rejeitou seu pedido de empréstimo para a lavoura após tê-lo observado dos pés à cabeça. Taxado de “pé-rapado” e “pé-descalço” (termo peronista) não se abateu. Sacou polpuda soma que tinha noutra instituição, pôs na mala e a abriu na frente de quem o desprezou. Fez justiça com os próprios pés. Outros o veriam sem preconceito.
Noutra passagem, compareceu com fino terno à inauguração do suntuoso cinema da cidade. Foi barrado pelo porteiro, que exigia pisante no traje. Conrado correu pra casa e voltou com um par amarrado aos ombros pelos cadarços. Assim entrou.
Conrado jogava o esporte que se joga com os pés. Sem chuteiras, o aborígene urbano fazia gols e driblava nariz torcido, olhar espantado e deboche. O cidadão que desafiou o império de tamancos, tênis e sapatilhas teve a coragem de deixar exclusiva marca de sola no solo.
Com o fim das andanças de Conrado anos atrás, recobrei recorrente pesadelo no qual me via com pés pelados durante uma festa. Medo sem pé e sem cabeça do ato antissocial.

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