Pasta Joia Review - 24


Fidelidade canina
Ouvi esta história triste numa fila de banco, lá na agência Savassi do então ABN Amro Real. Vou resumi-la a partir do relato que ouvi de um casal à minha frente. Seu Orlando era um paciente terminal. O câncer alojado em seu fígado estava em estágio avançado e ainda se espalhava. O fim de seu longo curso final era apenas uma questão de tempo. Pouco tempo. Meses, talvez semanas.
Mas a maior tragédia para esse velho rabugento era saber que, embora viva rodeado de familiares – mulher e enteados –, não tinha deles qualquer carinho ou atenção. Esses gestos, justamente os mais valiosos em momentos como o que ele miseravelmente atravessava, não estavam presentes. Restava então remediar a dor com uísque, ao ritmo de uma garrafa a cada 12 horas. E o ancião alcoólatra só encontrava carinho e atenção verdadeiros e necessários nos seus quatro cães.
A fidelidade canina foi o resquício de humanidade oferecido a esse pobre diabo branco. Nem mesmo a infame máxima atribuída a Otto Lara Resende sobre os mineiros, a da solidariedade apenas quando o Mal maior chega, se confirmava. Dois grandes pastores alemães e dois pequenos schnauzers faziam mais do que companhia ao dono. Eram os únicos moradores do seu lar a se empolgar com a sua presença. Eram os únicos que se postavam dia e noite ao lado do velho Orlando. Eram os únicos que “abanam o rabo” para ele, mediante míseros gestos de ternura. Nada cobravam, nada reclamavam e a tudo perdoavam.
Só os cachorros conseguiam olhar nos olhos dele e escapavam da grosseria do moribundo. E só eles não partilhavam do rancor mútuo entre o patriarca da família e os seus dependentes. Terrível.
Família? Outrora um poderoso homem de negócios, Orlando chegou aos últimos dias consumido diariamente pela doença e pelo arrependimento. Sabia em cínico silêncio que os humanos do lar estão ali apenas aguardando pelo seu desaparecimento para poderem apossar de todos os seus bens terrenos. Os instantes de felicidade trazidos pelo afeto incondicional dos animais domésticos não lhe davam mais esperança, mas conforto na dor de uma solidão fielmente vigiada. Até mesmo a fé cristã, que o triste senhor havia abandonado, parecia ser pregada pelos personagens irracionais dotados de compaixão atávica.
Aqueles peludos de quatro patas não eram apenas os melhores amigos do homem, mas os que restaram de uma vida marcada por desavenças e chantagem emocional. Os bichos amparavam Orlando enquanto os membros de seu clã só parasitavam. Assim, quando seu dia derradeiro bateu à porta, o dono da mansão deu o seu último suspiro nos braços dos amigos fiéis. Ou melhor, com eles nos braços. A solidariedade dos homens, para ele, já tinha morrido bem antes. Como dizia o ex-ministro do Trabalho Antônio Rogério Magri, o cachorro parece ser o verdadeiro ser humano, portador de um amor realmente incondicional.

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