Pasta Joia Review - 25


Uma roseira chamada Hebe
Usei óculos 3D há 40 anos! Sim, foi com o estereoscópio de tia Hebe que experimentei a sensação visual de profundidade em superfícies planas, olhando pares idênticos de fotografias antigas de praças da Europa. As lentes centenárias da armação metálica, contornada por flores em relevo, me conduziam à imersão tridimensional preto e branco. Imagens sublimes, realidades virtuais e mundos distantes eram algumas das paixões da cândida dona do artefato.
Em Curvelo, a irmã de minha avó materna dedicou a maior parte da sua longa vida à Igreja Católica, à família e às rosas – vegetais, artesanais e místicas. Modista e florista, Hebe rumou para a eternidade solteira e sem filhos, mas deixando extensa e primorosa obra em tecidos e fios. Costurando, tecendo e cultivando pétalas, ela aplacou persistente enxaqueca e um rosário de lágrimas vertidas após duas doloridas decepções amorosas colhidas nos tempos de moça.
Mestra de frivolité – a arte de fazer renda com nós –, tia Hebe encantava a todos com seus minúsculos e graciosos desenhos de crochê. Os trançados que saíam das pontas de seus dedos e de uma agulha amendoada chamada navete embelezavam roupas de cama, mesa e banho e as vestes de elegantes mulheres. De sua técnica e paciência surgiram laços e anéis que despertaram a atenção até de madames de confecções famosas de Belo Horizonte.
Carretéis, botões, retalhos e aviamentos enchiam seus frascos de vidro e caixas de lata de biscoitos Aymoré e de chocolate em pó “dois frades”. Tudo bem organizado, assim como coleções de relíquias, medalhinhas e santinhos de batismo e primeira comunhão. Folhinhas do Sagrado Coração, um missal bilíngue (latim e português), dedal e fotos também estavam no seu acervo hoje museológico. No meio dele emergia uma clássica máquina de costurar Singer.
Tal qual tantas outras carolas mineiras, era na religião que Hebe se protegia dos espinhos da saudade. Além de parentes, sentia a perda do primo e noivo Cecé, de Itabira. Naquela época em que pegar na mão já era compromisso, o casamento não vingou em razão da morte prematura do amado: gripado, tomou carrapaticida no lugar do xarope. O escuro e a semelhança dos frascos foram fatais. Por conta dessa lembrança, as noites de luar eram as mais sofridas para Hebe.
Anos depois, o veto da mãe de outro pretendente a impediu de vez de contrair núpcias. Apesar dos pesares, a idosa com o nome da deusa grega da juventude distribuiu sorrisos e palavras afáveis por todos os seus dias enquanto não estava rezando o terço sem se importar com o lugar.
Embora amiga de longa data de freiras, nunca pensou em se juntar a elas. Preferiu entrar ainda moça para a congregação Filhas de Maria e, por décadas, levou orgulhosamente no peito a medalha da Virgem, pendida do pescoço por fita azul. Vaidosa, trajava cores claras e abusava do pó de arroz. Sua curta e alva cabeleira, estilo Christine Lagarde, diretora-geral do FMI, ganhava tons celestes graças a um xampu especial para grisalhos.
Se ainda estivesse de pé, a roseira de rosas cor-de-rosa de Hebe, plantada por ela nos fundos da pensão onde morava, ganharia de mim o nome da dona. As duas deixaram a vida juntas, discretamente, para ressuscitar na memória dos que ainda andam por aqui.

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