Retrato agora completo

Donos da verdade
Sílvio Ribas

A verdade incomoda e até dói, como alguns fazem questão de martelar. Mas ela também pode aliviar tensões represadas de uma nação inteira e ainda dar as pinceladas faltantes no retrato incompleto de uma pessoa. Foi bem isso o que ocorreu no último fim de semana, quando este jornal e o Estado de Minas tornaram pública, pela primeira vez, a mais importante parte das memórias do cárcere da presidente Dilma Rousseff. Enquanto ainda convivemos ao nosso redor com os que negam uma melancia de problemas pendurada no próprio pescoço, é um alívio saber que lembranças dolorosas da governante do país ensinam como a história nacional tem a ganhar com a verdade do cidadão.

Seja por nobreza, por discrição ou por ambas as razões, Dilma não quis dar publicidade ao horror que sofreu. Ficou claro que nunca quis se apresentar como a vítima que é e muito menos a heroína, que também é. Essa atitude sincera da estudante mineira que virou presidente 40 anos após ser barbaramente torturada pelo Estado se contrasta com a postura de outros tantos que lucraram ao clamar por reparações de supostos constrangimentos com a censura.

Se uns embolsaram indenizações milionárias e pensões vitalícias, a ex-guerrilheira Estela, um de seus codinomes, preferiu virar a página pesada dos anos de chumbo e tocar a vida o mais leve possível. Com isso, preservou a integridade, a coerência e a devoção eterna dos companheiros de luta. Não era fácil ter 18 anos, como dizia a canção tocada no rádio daquela época pela italiana Rita Pavone. Para a chefe do Executivo brasileiro, os 19, 20, 21 e 22 também foram duríssimos, fato que as belas biografias sobre ela não conseguiram capturar.

Com ou sem Comissão da Verdade, especialistas descreverão a personalidade rude da presidente a partir dos registros dela que hibernaram por uma década numa caixa de papelão empoeirada num prédio do centro de Belo Horizonte. Desnecessário. Vale a impressão de que Dilma não quer se transformar em estátua de sal, olhando para trás nem ser retratada numa estátua de bronze no futuro. As lágrimas que verteu ao falar de quem confrontou a ditadura ficam agora mais cristalinas.

Também ganha novo significado o que a então ministra da Casa Civil de Lula disse em maio de 2008, durante audiência no Senado. "Aguentar a tortura é algo dificílimo. Somos humanos, temos dor e a tentação muito grande de dizer a verdade. O que mata na ditadura é que não há espaço para a verdade porque algumas verdades, até as mais banais, podem conduzir à morte." Deixemos Estela em paz.


Fonte: Correio Braziliense - 21/06/2012

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