Águas vão rolar

Sílvio Ribas

A poluição, o crescimento urbano desordenado e as mudanças climáticas estão tornando a água doce do Brasil — recurso do qual o país é líder mundial — o protagonista de uma crescente contradição econômica. Especialistas, empresários e agentes de governo já temem o cenário de um apagão hídrico nas principais regiões metropolitanas até o fim desta década. Além do constrangimento na oferta, as projeções também mostram uma curiosa perspectiva, que está tornando a produção da água bombeada para torneiras num patamar até 60% mais caro do que o das garrafas PET de água mineral. A discrepância vem à tona quando se ignora a classificação, pelo sistema tributário, da água mineral como minério e não como item básico de consumo.

Um dos temas na agenda da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável — a Rio+20 —, que será aberta na próxima semana no Rio de Janeiro, o encarecimento da água potável pressiona hoje o Estado a agilizar investimentos em infraestrutura de saneamento básico e estimula empresas a implementar programas de gestão racional do uso de recursos hídricos. Segundo Sérgio Ayrimoraes, coordenador de pesquisas da Agência Nacional de Águas (ANA), a diferença de valor entre águas pública e privada decorre de diferentes fatores, sobretudo eventos climáticos extremos (cheias ou estiagem) e a dificuldade cada vez maior em se tratar água de rios, lagos e outras fontes.

A aparente contradição entre o fato de o Brasil ter a maior oferta mundial de água doce e figurar só em oitavo lugar entre os mercados consumidores de água mineral deve-se, por sua vez, ao regime tributário sobre o setor. A Constituição de 1988 deu nova denominação à água, de bem natural para mineral não-metálico, levando a carga de impostos a sair da média mundial ainda vigente, de 6,8% sobre o valor cobrado do consumidor, para chegar aos atuais 44,5%. Quase metade do valor pago pelos engarrafados em diferentes formatos vem de tributos federais e estaduais (ICMS), além dos royalties.

Essa disparada foi também motivada em 1992 pela mudança da classificação fiscal da água, de alimento, ao lado de sucos e leites, para bebida, no grupo de refrigerantes e cervejas. “Essa alteração do Ministério da Fazenda levou o setor a recolher até o imposto sobre produtos industriais (IPI) apesar de explorar recurso 100% natural. Na Europa, todos os impostos incidentes na água mineral somam 6% e há países como o México onde ela é totalmente isenta”, comenta Carlos Alberto Lancia, geólogo e presidente da Associação Brasileira de Indústria de Águas Minerais (Abinam).

A entidade pressiona parlamentares no Congresso para aprovar projeto de lei que zera a tributação sobre garrafões de 20 litros, sob o argumento de favorecer alternativa de abastecimento em núcleos urbanos sem acesso à água tratada ou onde serviços públicos são precários. Lancia ressalta que a saúde pública e a economia popular seriam beneficiadas com o estímulo do consumo via isenção tributária. “A rigorosa exigência legal de qualidade para as fontes minerais não se aplica à água de torneira”, resume.

Enquanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tolera a presença de bactérias em 5% das amostras das companhias de abastecimento para indicá-las como seguras ao consumo humano, as águas minerais têm de apresentar total ausência de microorganismos. Relatório de qualidade da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) reforça a tese ao apontar que seis dos seus 11 sistemas de fornecimento ficaram em março abaixo do parâmetro mínimo de confiança de 95%.

Outro ponto a favor dos garrafões seria o índice virtualmente zero de perdas na produção, ao contrário dos vazamentos e roubos das redes de saneamento no país, que levam ao desperdício médio de 37% da água tratada, além de elevar riscos de contaminação. “Enquanto o reuso de um garrafão de água mineral gasta dois litros na lavagem, a produção de um litro de refrigerante pode empregar até 30 litros de água comum”, acrescenta.

A oferta nacional vai muito além da simples e essencial hidratação, incluindo minerais que ajudam a digestão e fortalecem o organismo. Tais características têm chamado a atenção do setor, que na prática vende serviços e não produtos. É por essa razão que um garrafão de 20 litros, mesmo com impostos, custa em média R$ 7 na porta do consumidor. Na origem, seu custo é de R$ 1, o que dá R$ 0,05 por litro.

Descontados impostos, o equivalente a um galão de 19 litros de água tratada nas grandes metrópoles tende a ficar mais caro que o mineral, se considerar todos serviços envolvidos, chegando a R$ 11,20 ou R$ 0,55 o litro. Em 2050, essa diferença pode bater em 300%. Enquanto o garrafão é economicamente sustentável, a água de torneira não é, por envolver longa cadeia de produção, com represas, energia e produtos químicos.

Considerando a média de consumo diário de 150 litros por pessoa, para todos os usos, o sistema gasta mensalmente pelo menos R$ 9 por habitante para levar os 4,5 mil litros de água usados individualmente. Se considerar perdas e investimentos em novas ligações, o valor pode subir para o dobro. “Precisaríamos investir R$ 22 bilhões apenas para proteger bacias e nascentes”, comenta o presidente executivo do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos.

Ele alerta para o ponto de saturação aponta para deficit hídrico nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo em 2016, considerando que a partir de 2014 não haverá local disponível para captar água potável nas cidades, que já importam água de outras bacias e sistemas, distantes a mais de 100 quilômetros. A Grande São Paulo já consome quatro vezes mais água do que produz. Buscar água do extremo sul do estado , com custo alto de energia elétrica para bombear. “Racionamentos viraram rotina”, lembra ele.

Ademar Romeiro, professor da Universidade de Campinas (Unicamp), ressalta a existência de custos indiretos no consumo de água fornecida pelo serviço de abastecimento, se considerar seus efeitos nocivos à saúde da população. Ele duvida que a água mineral venha a ficar mais barata que a da torneira. Contudo, em lugares como a capital paulista a qualidade dos volumes captados na principal fonte (represa Guarapiranga, no caso) é ruim apesar dos enormes gastos com tratamento.

Segundo o especialista em recursos hídricos, isso decorre, em primeiro lugar, em razão dos próprios produtos químicos usados e, depois, porque nem sempre se atinge a dose certa de agentes para evitar proliferação de algas tóxicas, que passam facilmente pelo sistemas de filtros, podendo até matar pessoas debilitadas. “Se despesas com tratamento de saúde decorrentes dos malefícios da água de rede pública fossem contabilizadas, seu preço se tornaria provavelmente superior ao da água mineral”, ressalta.

Pouco mais da metade da população não está ligada a qualquer rede de esgoto e só um terço dos esgotos é tratado. Apesar disso, o consumo de desinfetantes usados pelas companhias de saneamento vem subindo a taxas anuais de 2% a 4,5%, chegando em 2011 a 43 milhões de toneladas só de cloro, que concorre com processos como radiação ultravioleta e ozônio. “O cloro é mais eficiente na eliminação de microorganismos nocivos à saúde, porque desinfeta a água até a torneira do usuário”, ressalta Aníbal do Vale, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Álcalis, Cloro e Derivados (Abiclor).

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