Disparates da adoção


TODA CRIANÇA MERECE UMA FAMÍLIA

Patrícia Garrote, advogada

O artigo do mês de maio trouxe à tona a questão da adoção no Brasil, revelando a necessidade urgente de se esclarecer as regras desse sagrado instrumento capaz de dar à criança e ao adolescente o que mais desejam no mundo: uma família.

Primeiro, vamos começar pela realidade brasileira: segundo dados do CNJ, existem atualmente cerca de 27 mil pessoas na fila de espera e menos de 5 mil menores disponíveis. Dos pretendentes, 24 mil são casais, 2,7 mil são mulheres e 300 são homens aptos a adotar imediatamente, devidamente habilitados pela Vara da Infância e Juventude de sua cidade.

O descompasso é gritante e fere a razoabilidade. Não dá para entender como é que há mais pretendentes que crianças e mesmo assim a fila não anda. Enquanto isso, nos abrigos, menores em processo de destituição do poder familiar aguardam por longos dias e sofridas noites o momento de ter um lar para chamar de seu, com papai, mamãe, talvez irmãozinhos, muitos brinquedos, cama quentinha, sorrisos largos, abraços apertados, uma nova vida. Infelizmente, essa realidade é para poucos: muitos chegam aos 18 anos sem viver essa experiência. Abandonados, rejeitados, deixam de ser escolhidos, seja pela cor, pelo tamanho, pela idade, pelo fato de ter irmãos ou alguma doença. Perdem a chance de ter um lar porque nasceram diferentes da expectativa dos pretendentes, que esperam o filho perfeito. Outros, porque ficaram tanto tempo em processo de destituição do poder familiar que quando chegou a hora o tamanho e a idade viraram obstáculos intransponíveis.

Uma vez visitei um abrigo em que as crianças eram separadas na hora das refeições: em uma mesa ficavam as crianças que tinham família. Em outra, as crianças abandonadas, vítimas de violência, em processo de destituição do poder familiar, todas com carinha triste e olhar assustado. Quando lá cheguei, havia dois gêmeos com cerca de seis meses de idade, pardos, que estão naquele lugar até hoje. Isso há cerca de dez anos. Em outro abrigo, fui levada ao andar superior, onde em uma mesma sala, comprida e enorme, ficavam, de um lado, em grandes colchonetes, crianças e adolescentes com alguma deficiência, enquanto de outro lado várias crianças de todas as idades e tamanhos corriam e brincavam uma com as outras. Pude notar dois carrinhos de bebês do lado direito da porta, com uma menininha em cada um, ambas com olhar triste, certamente presas àquelas cadeirinhas por horas. Um cheiro forte de urina no ar, a visão era de tristeza e desesperança. A assistente (só uma!) saíra por um instante. Quando retornou, me tirou de lá apressadamente. Não voltei mais. Muitas vezes me pego pensando na vida dessas crianças e adolescentes, dia após dia, noite após noite, à espera de um milagre.

Inadmissível que em um país como o nosso, tão generoso e atento aos direitos dos menos favorecidos, existam crianças sem um lar seguro, sem oportunidade de olhar nos olhos de sua mãezinha enquanto tomam sua mamadeira quentinha, aninhadas nos braços da pessoa mais importante de sua vida. E que existam mães e pais em potencial aguardando por anos a fio a chance de finalmente poder colocar o tão esperado filho no colo.

Penso que é chegada a hora de elaborar uma força-tarefa para ajudar esses pais em compasso de espera a encontrar os filhos que também estão em compasso de espera. Talvez disponibilizando um cadastro, com fotografias atualizadas, das crianças aptas à adoção e em processo de destituição do poder familiar, exclusivamente aos pretendentes habilitados, oportunizando o encontro com os filhos que desejam ter. Talvez divulgando na mídia, insistentemente, casos bem-sucedidos de adoção tardia ou de irmãos, ensinando como adotar, demonstrando que filho não tem idade, nem cor, nem tamanho. Só amor. Um amor louco, apaixonado, inexplicável, invisível, que une corações, vidas e lindas estórias.


Fonte: Jornal Lago Notícias em junho/2012

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