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Um mausoléu para o Padre Corvello

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Heróis, figuras folclóricas e personagens inspiradores ajudam uma sociedade a forjar sua própria identidade, a compreender seus valores, costumes e ideais e, ainda, ser reconhecida por esses elementos. Tiradentes (Ouro Preto-MG), Chica da Silva (Diamantina-MG), Dona Beja (Araxá-MG), Dona Joaquina (Pompéu-MG), Maria Quitéria (Feira de Santana-BA), Antônio Conselheiro (Canudos-BA), entre outros, são exemplos de pessoas que ajudam a definir grandes comunidades. Nesse grupo deveria estar o Padre Antônio Corvello de Ávila (?-1749), um ilustre desconhecido dos brasileiros em geral e até mesmo da maioria dos moradores de Curvelo (MG), cidade que ele fundou no sertão conturbado do século 18. A recente morte do historiador Geraldo de Souza me pôs a refletir sobre o fato terrível de que o trabalho dele e de tantos que o antecederam merecia e merece prosperar, pois a biografia de alguém tão relevante para a história curvelana, mineira e nacional quanto o redentorista Corvello (com o em vez de u...

A trilha do jovem baladeiro

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A nossa adolescência naqueles divertidos anos 1980 era um convite para degustar amostras dos prazeres da vida adulta. Sem o peso completo da responsabilidade dos maiores de idade, nos lançávamos às nossas primeiras imersões noturnas em busca de diversão, amor e autodescoberta. Sob o jugo da rígida moral católica, os garotos da pequena e sertaneja Curvelo (MG) debutavam cedo, por volta dos 13, liberados para percorrerem, sozinhos ou em bandos, bares, praças, festividades populares e sedes urbanas dos clubes sociais. O objetivo central dessas incursões, dignas de um ritual de iniciação, era ganhar simpatia de belas garotas da cidade. Recordo-me com ternura do trajeto plano, quase todo em linha reta e cortado por poucas ruas, entre a minha casa e a Benedito Valadares, que depois poderia estender-se um pouco mais até o Recreativo ou desviar-se para mesas barulhentas nas calçadas, em aglomeração com amigos. Eram nesses pontos de chegada que ocorriam os momentos mais esperados das noites de ...

Letras mágicas da cartilha

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A mesma saudade da “professorinha que ensinava o beabá”, cantada por Ataulfo Alves em inesquecível canção, me levou a vasculhar a memória em busca do comecinho do meu letramento. A regressão de quase meio século me pôs de volta numa sala de aula com o pé direito alto do endereço original do Instituto Pequeno Príncipe (IPP), na minha pequena e sertaneja Curvelo (MG). Nessa página perdida de um livro de contos de fadas, me vejo aos seis anos sendo apresentado ao mundo das letras, sílabas, palavras e frases. De olhos fechados, procuro pela Tia Graciette Lopes de Figueiredo. Como hábil contadora de histórias, minha mestra primeira transformava a alfabetização em jornada encantada, repleta de imagens vivas. No alfabeto traçado como coleção de figuras enxergava o A como telhado de casinha, o B como mamãe grávida e o C como queijo Minas já cortado. E o quê era o Q? Ora, um gatinho de costas a balançar o rabo. Nesse ABC do IPP era muito divertido desenhar os 23 integrantes do alfabeto (ainda...

1980s, uma história sem fim

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Sinto grande orgulho ao observar meu filho adolescente se envolvendo com filmes, músicas e outras formas de arte datados dos anos 1980, uma época em que era eu o jovem cheio de sonhos e espinhas no rosto. Recentemente, ao compartilhar com ele a bela canção de "A História Sem Fim", interpretada por Limahl há 40 janeiros, percebi a razão pela qual a humanidade continua a sentir atração irresistível por essa década específica. O repertório oitentista invade corações dos nascidos neste milênio, mesmo que rotulem os conquistados de "vergonha alheia". Isso porque maravilhas desse tempo continuam sendo descobertas nos âmbitos globais, digitais e sem barreiras temporais. As novas gerações desfrutam o ótimo que a minha testemunhou, acessando hoje, via hiperlinks, um gigantesco patrimônio acumulado. Aplaudo as homenagens que a dupla Veludo & Cotelê, de "Trolls 2", e o vilão Balthazar Bratt, de "Meu Malvado Favorito 3", fazem aos anos 1980. Tal qual os ...

Pintura modernista no verso da mesa

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Dentre as muitas lembranças queridas da minha infância em Curvelo (MG), uma se destaca como única e transcendental. É uma pintura involuntária e secreta, o retrato de um céu colorido que se abria diante dos meus olhos curiosos, com uma moldura invisível. Na face escondida da mesa de jantar em minha casa, aquela imagem aparecia quando me deitava no chão, embaixo dela. Aquele móvel, parceiro e testemunha da habilidade artística da minha mãe, a artista polivalente Mary Ribas, comportava um largo e paciente trabalho dela, feito de pinceladas aleatórias ao longo de anos.  O segredo do verso do tampo perdurou.  Minha mãe, sentada na ponta da mesa, transformava as superfícies que cortava, colava, esculpia e pintava em fantasias, roupas estampadas, objetos decorativos e bonecos. A inspiração dela preenchia uma lista variada de tarefas artesanais jamais catalogadas. Contudo, foi naquela comprida prancha de madeira, no lado oculto dela, que um extrato da longa jornada de trabalhos e uma...

Os sonetos de minha vó

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O s sonetos preferidos da minha avó materna, Sylvia, estavam em um volumoso e antigo livro de antologias poéticas, revestido de um tecido bege engomado e adornado com letras em relevo. Desde a minha infância, eu manipulava aquelas páginas costuradas com afeto, reconhecendo nelas a sua beleza, imponência, valor literário e, sobretudo, a sua ligação com a bela mãe de minha mãe, uma mulher singular para a sua época. Sylvia, mineira da pequena Curvelo, que deixou este mundo no começo de 1939, aos 33 anos, ainda quando a sua única filha era bebê de quatro meses, nutria grande paixão pela leitura e pela escrita de poemas, destacando-se a sua estima por esse compêndio, que acabei herdando. Os vestígios da sua presença e de sua interação com aquela obra se revelavam nas páginas marcadas por pétalas de flores prensadas e fragmentos de folhas pautadas tiradas de cadernos. Trata-se do "Sonetos Brasileiros – Século XVIII-XX", organizado por Laudelino Freire e publicado em 1904 e 1913 pel...

O galinho do tempo

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  Ao fechar os olhos e permitir que a mente se perca nas lembranças, sou transportado de volta para as andanças pelas casas de vizinhos e amigos na minha pequena Curvelo (MG), durante os já distantes anos 1970 e 1980. Recordo-me de explorar cantos e recantos, resgatando objetos nostálgicos que se encontravam enterrados não apenas em nosso passado, mas também profundamente em nossos corações. Já compartilhei aqui sobre as grandes emoções proporcionadas pelas pequenas coisas presentes nos lares modestos da época. No entanto, reviver essas experiências torna-se ainda mais palpável quando nos deparamos com sinais evocativos da mesma nostalgia. Recentemente, ao adentrar uma vidraçaria, meu pensamento foi imediatamente levado àquele icônico quadro que simulava uma imagem tridimensional do rosto do Cristo do filme "Jesus de Nazaré" (1977). Seus olhos pareciam ganhar vida, abrindo-se enquanto mudávamos de posição para contemplá-lo. Era algo verdadeiramente divino, e recordo-me de...