Dentre as muitas lembranças queridas
da minha infância em Curvelo (MG), uma se destaca como única e transcendental. É uma pintura involuntária e secreta, o retrato de um céu colorido que se abria diante dos
meus olhos curiosos, com uma moldura invisível. Na face escondida da mesa de jantar em
minha casa, aquela imagem aparecia quando me deitava no chão, embaixo dela.
Aquele móvel, parceiro e testemunha da habilidade artística da minha mãe, a artista polivalente Mary Ribas, comportava um largo e paciente trabalho dela, feito de pinceladas aleatórias ao longo de anos.
O segredo do verso do tampo perdurou. Minha mãe, sentada na ponta da
mesa, transformava as superfícies que cortava, colava, esculpia e pintava em fantasias, roupas estampadas,
objetos decorativos e bonecos. A inspiração dela preenchia uma lista variada de tarefas
artesanais jamais catalogadas. Contudo, foi naquela
comprida prancha de madeira, no lado oculto dela, que um extrato da longa jornada de trabalhos e uma
perene obra de arte se desvendaram. Com pincéis, mas principalmente com as mãos, Mary deixou ali, sem querer, um painel multicolorido e modernista.O pragmatismo da artista ao limpar
constantemente as pontas dos dedos manchadas por tintas de todos os tipos, além de colas e purpurinas, encontrou na parte não exposta da plataforma um meio inconsciente de expressão. Ali, riscos, traços e borrões ganharam vida, formando um harmonioso e impressionante mosaico em meio ao caos. A borda da mesa também estava salpicada por cores, tais como satélites do "quadro".
Nas noites em que minha mãe se
dedicava às suas criações, aquele espaço não permanecia indiferente. O vai e vem da limpeza dos dedos era como um balé sobre um tablado, que virava tela fresca de obra impressionista a cada toque. Guache, óleo, solvente, cola escolar, purpurina, fiapos de pena e resinas estavam lá, reunindo elementos de tonalidades e texturas variadas. Esses materiais servidos sob a mesa viravam repositório
artístico e magia na face inversa da peça quadrúpede do mobiliário.
Hoje, ao relembrar esses encantadores
momentos de menino, sinto profunda nostalgia. A arte da minha mãe, gravada
naquele local sagrado das refeições em família, ressoa como um lembrete de
como a criatividade e a beleza podem florescer mesmo nos lugares mais
inusitados e sem qualquer pretensão ou planejamento. E sempre que contemplo o céu colorido avistado do chão da sala ainda presente na minha memória, agradeço
por ter tido a sorte de testemunhar o milagre servido sob a mesa de jantar.
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