Letras mágicas da cartilha


A mesma saudade da “professorinha que ensinava o beabá”, cantada por Ataulfo Alves em inesquecível canção, me levou a vasculhar a memória em busca do comecinho do meu letramento. A regressão de quase meio século me pôs de volta numa sala de aula com o pé direito alto do endereço original do Instituto Pequeno Príncipe (IPP), na minha pequena e sertaneja Curvelo (MG). Nessa página perdida de um livro de contos de fadas, me vejo aos seis anos sendo apresentado ao mundo das letras, sílabas, palavras e frases. De olhos fechados, procuro pela Tia Graciette Lopes de Figueiredo.

Como hábil contadora de histórias, minha mestra primeira transformava a alfabetização em jornada encantada, repleta de imagens vivas. No alfabeto traçado como coleção de figuras enxergava o A como telhado de casinha, o B como mamãe grávida e o C como queijo Minas já cortado. E o quê era o Q? Ora, um gatinho de costas a balançar o rabo. Nesse ABC do IPP era muito divertido desenhar os 23 integrantes do alfabeto (ainda sem K, W e Y) que combinados viravam fonemas e, depois, narrativas infantis.

Lembro-me que a minha cartilha não era aquela do “Ivo viu a uva”, muito menos a clássica “Caminho Suave”. Era um caderninho artesanal com dois furos na margem interna varados pela fitinha vermelha de um laço a unir as suas folhas. A conhecida fábula “Os Três Porquinhos” servia para sustentar e conduzir ladainhas que a classe entoava à cada lição, juntando consoantes e vogais para reproduzir sons. Essas abordagens lúdicas, acredito, plantaram sementes que mais tarde germinariam como minha paixão pela literatura.

Ao deixar o pré-primário e ingressar no primeiro grau da Escola Estadual Alcides Lins, a incursão pelo universo do ler e escrever continuou sob os cuidados de Maria Auxiliadora de Paula Ribeiro, do primeiro ano, e Amelina Carneiro Martins, do segundo. Para explicar as regras de acentuação, as tias queridas evocavam os entes familiares, ilustrando o acento circunflexo como "chapéu do vovô" e o agudo como "varinha do coque da vovó".

Havia ainda uma explicação encantadora para o enigma de certa regra gramatical que jamais esqueci. A professora com talento para converter um decoreba em relatos cativantes, nos contou a aventura de P e B numa estrada de terra. Segundo ela, certa vez, esses amigos estavam viajando, quando o carro quebrou no meio do caminho. Isolados na estrada, pediram ajuda ao N, que ignorou a tudo e seguiu adiante. O sufoco só acabou quando surgiu o samaritano M. Com isso, a dupla P & B só aceita o M para lhes fazer companhia no banco do carona. 

O Português é campo de sonhos. Que orgulho ver o meu diplominha colorido do IPP, de dezembro de 1976. Que orgulho ter rabiscado minha primeira assinatura lá.


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