Oito vezes a besta

Sílvio Ribas A famigerada Lei Geral das Licitações, mais conhecida como 8.666/93, completa 20 anos em junho com um pesado saldo de atrasos e de encarecimentos de obras, além de nunca ter cumprido a sua principal meta de dificultar os atos de corrupção. Sem qualquer interesse em corrigir essas normas burocráticas criadas poucos meses após o impeachment do presidente Fernando Collor, o Planalto prefere apelar cada vez mais para controversos atalhos, tornando mais tortuoso o sistema de contratações públicas e agregando a ele novas desconfianças. Dos R$ 72,6 bilhões gastos pela União com a compra de produtos e serviços em 2012, pelo menos um quinto do total, R$ 14,5 bilhões, desceu pelo ralo dos malfeitos orquestrados por empresas interessadas nas licitações, aliadas ou não a servidores e autoridades dos três níveis de governo. A fraude mais comum é o superfaturamento do objeto contratado, antes ou depois do processo licitatório. Isso tudo sem falar dos prejuízos gerados à economia por não garantir execução de qualidade e no tempo razoável de medidas estratégicas e fornecimento de bens essenciais à sociedade. Para especialistas ouvidos pelo Correio, adiar a reforma da Lei 8.666 só amplia os desvios de recursos fiscais e pode inviabilizar de vez o pretendido destravamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Não vejo qualquer sensibilidade da classe política para vencer a os vícios das licitações, sobretudo de obras públicas, que acabam favorecendo apenas a grandes grupos econômicos e a interesses cartoriais e sindicais”, lamenta o presidente do Instituto Hélio Beltrão (IHB), João Geraldo Piquet Carneiro. Indústria de papéis O advogado de Brasília denuncia uma “indústria de papéis”, formada por dezenas de certidões exigidas de candidatos nos certames. “Falsários atuam livremente e qualquer descumprimento formal é pretexto para embargos e retrocessos”. Ele lembra que o Brasil já deu exemplo de esforço para simplificar regras em 1979, quando o ministro Beltrão lançou o Plano Nacional de Desburocratização, “mas posturas autoritárias barraram a continuidade dos avanços”. Na sua avaliação, as doenças do sistema de contratação pública têm raízes mais profundas, dos tempos de inflação descontrolada. “A burocracia criada para fazer a correção monetária dos pagamentos ao longo da execução da obra andou de mãos dadas com os burocratas e empresários corruptos. Esses vícios estão presentes até hoje, apesar de a realidade econômica do país ser bem diferente”, resume. A adoção de regras paralelas, como as do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), instituído com a Lei 12.462, de 2011, tem sido a fórmula encontrada pelo Executivo para driblar sua angústia com a série de dificuldades para concluir projetos de infraestrutura que se arrastam por anos, como a transposição do São Francisco e a Ferrovia Norte-Sul. A maioria dos entraves tem origem no excesso de formalismos da legislação e o remédio adotado se vale da pressão do calendário dos grandes eventos esportivos — Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e os jogos olímpicos e paralímpicos (2016) — para justificar ampla flexibilização dos rigores nas compras. Para piorar, essas legislações paralelas, implantadas por meio de medidas provisórias e portarias para serem, em tese, provisórias e específicas a alguns temas, avançam para outros setores como saúde e educação, sem prazo definido. “A RDC já se aproxima de áreas como a administração dos portos e aeroportos, enquanto retira a transparência dos processos”, sublinha Augusto Neves Dal Pozzo, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji). Ele aponta como maior erro do sistema especial a chamada contratação integral, que abre mão de projetos básicos, além de autorizar orçamentos sigilosos. “Isto é inconstitucional”, adverte. Dal Pozzo vê perdas expressivas nas licitações dentro e fora da 8.666, seja por diversos artifícios e brechas legais, seja em razão dos retardos, abandonos e até reformas e reconstruções de obras com sérios erros de engenharia. “Na prática, estamos convivendo com dois regimes de contratação e avançamos quase nada na direção de dar mais publicidade aos processos, usando os recursos online. Agilidade, sim, mas sem perder o controle jamais”, comenta. Em adição, o advogado defende a troca do critério de melhor preço oferecido entre candidatos pelo de melhor custo, considerando a necessidade de manutenção e qualidade. Exemplo disso é a estrada repleta de buracos todos os anos, logo após o período chuvoso. Após balizar todos os 143 projetos que tramitam na Câmara no sentido de atualização da 8.666 e analisar sugestões de 8,5 mil internautas, o deputado federal Fábio Trad (PMDB-MS) relatou um projeto que espera desde o começo do ano para ser apreciado. Na semana passada ele apelou via ofício ao presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Décio Lima (PT-SC), que coloque a proposta em votação para seguir ao plenário. “Quando o governo mostra pressa para tornar regra exceções à Lei 8.666, o Congresso precisa garantir a redução das hipóteses de crimes e fraudes em licitações e também o excesso de burocracia”, discursa. No Congresso Entre os itens da reforma que defende para a legislação, está a presença maior dos pregões eletrônicos, inclusive para grandes obras, e a submissão do processo às entidades da sociedade civil que estão isentas. “Propus também incluir nos contratos seguro financeiro obrigatório, para cobrir eventuais perdas com falhas na licitação ou mesmo com a não conclusão do projeto”, informa. Ronaldo Lamarão, pesquisador da Universidade Gama Filho (RJ) e consultor jurídico de licitações, vê com bons olhos uma aposta maior na modalidade de pregão, que já gerou desde sua introdução pela Lei 10.520, de 20002, uma economia média de 20%. Nos casos que estudou, como os do Senado, os valores pagos ficam até 80% abaixo dos lances iniciais. Por outro lado, o maior foco de distorções na lei está nos aditamentos ou aditivos, resultado sobretudo das imprecisões ou omissões de relatórios elaborados pelos órgãos licitantes. Lamarão reclama que a fase interna das licitações, sobre responsabilidade de técnicos do governo, seja o grande foco de interpretações erradas ou riscos não dimensionados. Kátia Barcelos, coordenadora da consultoria Apoio ao Controle Interno da Administração Pública (Acintap), sugere que artigos da Lei Geral de Licitações que foram total ou parcialmente alterados por portarias e outras leis fiquem mais claros. “Até o Tribunal de Contas da União (TCU) se confunde com exigências mais recentes, como obrigações de sustentabilidade ambiental”, pontua ela. Com um tom mais radical nas críticas à 8.666, o professor Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobras, chama a lei de “uma das mais imbecis” do país, ao facilitar jogos de empresas para explorar pontos fracos de suas normas. Balanço Conforme dados do Ministério do Planejamento, as compras governamentais movimentaram 231,8 mil processos em 2012. Destes, 193,7 mil (84%) estavam dispensados de licitação, movimentando R$ 24,5 bilhões (34%). Ao longo dos últimos seis anos, as licitações variaram de 63% a 74% do total de processos, saltando 84% na comparação com 2007. O pregão eletrônico respondeu por 46% das compras governamentais no ano passado, com desembolso de R$ 33,6 bilhões em 34,7 mil processos (15%). Esse tipo de contratação foi responsável por 70% dos gastos, gerando economia para os cofres públicos de R$ 7,8 bilhões (19%). Nos últimos cinco anos, as licitações via pregão eletrônico cresceram 33% em quantidade e 78% em valores. Até na Bíblia Especialistas em gestão pública não resistem em apelidar a Lei das Licitações de “oito vezes besta”, associando o primeiro algarismo ao bíblico 666, o número da besta. Parece até teoria da conspiração, mas até o capítulo 13 do livro Apocalipse parece brincar com os malfeitos em torno da 8.666. Os dois últimos versículos professam: “para que ninguém pudesse comprar ou vender, senão aquele que tivesse o sinal, ou o nome da besta (…) e o seu número é 666”. Para os críticos da morosidade e da corrupção nos processos licitatórios, a figura mística é interpretada como uma metáfora ao monstro estatal. Fonte: Correio Braziliense de 7 de abril de 2013

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