Burocracia para adotar


por Sílvio Ribas

Quase um ano depois de a Lei Nacional de Adoção (12.010), de agosto de 2009, ter entrado em vigor com inovações, a burocracia ainda desafia profissionais do Direito de Família. A nova legislação derrubou o percentual de adoções ilegais, de 90%, ao longo dos 15 anos anteriores, para os atuais 48%. Mesmo assim, especialistas ouvidos pelo criticam a exigência de inscrição no cadastro criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para acelerar processos com mapeamento de dados de todo país. Para eles, a regra inibiu as adoções homologadas por juízes.

Os advogados defendem interpretação flexível da lei, admitindo casos em que a adoção direta pode ser, excepcionalmente, a melhor opção. Para Rachel Bernardes, de Brasília, processos de adoção só por casais cadastrados ignoramo princípio do "melhor interesse da criança". O que acontece é que muitos juízes entendem que a adoção direta tornou-se proibida até para os cadastrados e só levam em conta se o casal está no primeiro lugar da fila. "Não constato em nenhuma linha da lei qualquer vedação expressa", comenta Rachel.

Ela reconhece que as normas rígidas buscam proteger os vulneráveis, pois "a crueldade não escolhe idade, sexo ou classe social". Mas acha que deve haver equilíbrio para respeitar vínculos de afeto e atingir a felicidade plena do menor, lembrando que a própria lei pede aperfeiçoamento do sistema para garantir convivência familiar a todas as crianças e adolescentes.

"Aplicar a lei de forma literal é exigir que a vida siga roteiro previsível e ensaiado, desconsiderando o mais importante na relação", sublinha. Para a advogada, assim como é inadmissível um casal pagar pelo bebê, "não se pode tirar sem justo motivo uma criança de um lar seguro e carinhoso para colocá-la em abrigo".

Rigor estimula informalidade

Ricardo Castilho, presidente da Escola Paulista de Direito (EPD), afirma que o excessivo rigor do cadastro acaba estimulando a informalidade. A situação é agravada pela ordem cronológica estabelecida como regra geral de preferência para quem deseja adotar um filho. "Nada assegura que um candidato se mostre mais preparado para adotar um filho do que um recentemente inscrito", observa. Estão cadastradas 27 mil famílias e 5 mil crianças e adolescentes à espera de um lar. São Paulo concentra o maior número de famílias interessadas (7.369) e de pessoas aptas à adoção em abrigos (1.436).

De todas as famílias inscritas, 56% querem adotar crianças de até três anos e 40% só aceitam as brancas. As restrições de raça, idade e condições de saúde explicam o ainda longo tempo de espera na fila de pais e mães que optaram pela adoção. A maioria dos menores em abrigos tem perfil diferente do procurado pelos pretendentes.

Patrícia Garrote, advogada de Brasília especializada em Direito de Família, lembra que, até a lei ser promulgada, quem desejava adotar poderia fazê-lo escolhendo a criança em lares provisórios (abrigos). Hoje, contudo, há obrigação de seguir a ordem da fila no cadastro nacional e ainda se tentar todas as formas de abrigar a criança com a família biológica (qualquer parente) para, só depois, apresentá-la para adoção. "Acredito que as restrições pioraram a vida da criança que necessita de lar estável. Como a lei é nova, não se sabe até onde pode causar danos", comenta.

Mãe de quatro filhos - de 21, 17, sete e seis anos -, sendo os dois últimos adotados, Patrícia e o marido se cadastraram em 2003 na Vara da Infância de Brasília, onde a fila demorava cerca de dois anos. Com o estudo psicossocial pronto, escolheram uma recém-nascida no Rio Grande do Sul. Menos de dois anos depois, foram contatados por uma funcionária do tribunal dizendo que havia um bebê no hospital. Isso seria proibido pela nova Lei. "É péssimo para a criança, pois vai demorar mais tempo para chamar alguém de pai e mãe", finaliza.

Tendência

A adoção é o ato civil pelo qual alguém aceita um estranho na qualidade de filho ou o ato solene pelo qual se cria entre adotante e adotado relação fictícia de paternidade e filiação. A Constituição sugere um campo amplo de possibilidades. Ricardo Castilho, presidente da Escola Paulista de Direito, lembra que o artigo 227 da Constituição define como dever da família, da sociedade e do Estado "assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

A Constituição também pede que os menores sejam colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Segundo Castilho, esse preceito embasa o direito de casais homossexuais, solteiros e estrangeiros de adotar. Ele ressalta que a adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de efetivação por parte dos estrangeiros, por exemplo. A Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao regulamentar o artigo 227 da Constituição também autoriza adoções por maiores de 21 anos, independentemente do estado civil.

Se uma criança sofre maus tratos no seio de sua família biológica ou se é abandonada à própria sorte, sua adoção, seja por parte de casal homossexual ou heterossexual ou ainda por pessoa solteira e casais estrangeiros, só apresenta vantagens, desde que revele a formação de um lar, onde haja respeito, lealdade e assistência mútuos.

Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) criou precedente jurídico que permitirá aos casais homossexuais abandonar a prática usada de adoção individual para evitar problemas legais. Isso deverá equipar o Brasil à Noruega, Suécia e Canadá, entre outros.

Enquanto isso, o Congresso debate mudanças para corrigir distorções. O deputado João Matos (PMDB-SC) defende aprimoramento da legislação, mas contabiliza avanços, como a prioridade para que irmãos sejam adotados pela mesma família e o direito de o adotado conhecer a origem biológica.

Fonte: Brasil Econômico de hoje.

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