Carga pesada

Sílvio RibasMais frágil elo da cadeia logística, o caminhoneiro autônomo luta para preservar a profissão. A Lei do Descanso (12.619/2012), criada para eliminar as intermináveis jornadas de trabalho ao volante e há 20 meses em vigor, não emplacou. Para piorar, as regras a favor da saúde dos profissionais e contra acidentes nas estradas estão ameaçadas de serem esvaziadas pelo Congresso, com apoio do governo. Enquanto a regulamentação começa a avançar para empregados de transportadoras, para os que ganham a vida com caminhão próprio ela inexiste. O Correio ouviu alguns desses sobreviventes do asfalto em postos de combustíveis da BR-040. Todos apostam na extinção da atividade sem vínculo trabalhista. "Vamos todos falir antes de 2020 e nenhuma autoridade vai reclamar", desabafa o mineiro Paulo Altino, 35 anos, que pilota um modelo da sua idade. O caminhoneiro lembra com orgulho de quando tirou a primeira habilitação, em 1997, e do fato de já ter tido três caminhões. Hoje lamenta a falta de uma base de cálculo para o frete, que varia entre os extremos do alto valor para transportar produtos químicos e do baixo para grãos, numa média de R$ 1,2 mil. A taxa de retorno para um autônomo dedicado gira em torno de 30%. "Lucra quem topa tudo, e só aventureiro gosta desse trabalho", resume Altino, que tem planos para se mudar para os Estados Unidos em 2016.
Para todos os tipos de motorista no Brasil, a pausa obrigatória de pelo menos meia hora após quatro horas de direção é uma miragem. As paradas com, no mínimo, 200 quilômetros umas das outras, previstas na lei, são até comuns nas rodovias federais. Mas a maioria delas tem serviços limitados, deplorável estrutura e riscos para cargas e pessoas. "Dormir onde? Precisamos do mínimo de segurança e de conforto para isso. Os banheiros dos postos são péssimos, sem papel higiênico, e a comida servida nos restaurantes nas margens da via nos faz passar mal", protesta o paranaense Elton Carlos Nascimento, 29, contratado de uma empresa de logística de Campo Largo (PR). Sem alternativas, o breve repouso tem como destino certo as cabines dos próprios veículos, "até porque patrão não vai pagar dormitório". Filho de caminhoneiro, Nascimento revela que, de um total de quatro irmãos ligados ao transporte, um morreu e dois abandonaram a carreira. "Eles temiam se aposentar sem aproveitar a vida", suspira. Extinção Empurrado pelas drogas estimulantes e exposto a outros agentes nocivos, o motorista independente, principal personagem de tragédias em rodovias, também continua sendo diariamente excluído do mercado, pela defasagem do preço do frete, pela alta dos custos e pelo avanço de grandes empresas do ramo. Até 2011, eram dois milhões de caminhoneiros em atividade, sendo mais da metade (1,2 milhão) autônomos. Hoje, a situação se inverteu em favor dos assalariados, que só não ampliaram a diferença com mais folga devido à escassez de mão de obra. "Todo mundo roda mais de quatro horas direto porque não tem onde parar. Mas se fosse preciso colocar um segundo motorista no caminhão, o serviço não seria feito por falta de piloto", explica Márcio Valério Manfredi, 32, colega de empresa e conterrâneo de Nascimento. Ele acrescenta que o deficit ainda não bateu nos salários do carreteiro, hoje de R$ 1,5 mil a R$ 1,7 mil, conforme região e porte da empresa. Manfredi alerta para a iminente perda de cargas para as concorrentes ferrovias a partir do programa de concessões do governo nesta década. Com frete mais barato e vantagem nas longas distâncias, os trens mudarão o fluxo das rodovias. "No Mato Grosso, um sojicultor tem 900 caminhões para levar a colheita", ilustra. Especialistas lembram que a melhora da infraestrutura sempre revela suas distorções. Locais de fiscalização nas estradas indicam que o abandono da profissão pode estar mais adiantado, pois 70% dos motoristas de caminhão apresentam carteira assinada. Apesar de maior rigor contra tempo abusivo na direção, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) conta uma média de 62 mil acidentes anuais nas BRs envolvendo caminhões. Se for considerado o total de postos de combustíveis nas estradas federais, a cobertura parece atendida, mas não preenche quesitos, sobretudo na segurança. O jeito é continuar rodando e torcendo pela boa vontade dos donos de áreas de estacionamento e de hospedagem. A Lei 12.619 foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em abril de 2012, mas a aplicação foi adiada por resoluções do Contran até 12 de março do ano seguinte, fim da fase de adaptação. Os dispositivos que regulamentaram a profissão de motorista deveriam estar sendo plenamente cumpridos, mas ainda estão sujeitos à reforma proposta para a lei já promulgada por uma comissão especial do Congresso. Reações Paulo Douglas de Moraes, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) e encarregado do tema, vê a situação anterior à Lei do Descanso e as propostas para alterá-la como violações da legislação trabalhista e à Constituição. Ele identifica no anteprojeto de revisão o predomínio de interesses localizados, prejudicados pela perspectiva de alta do frete, que ainda não ocorreu. O MPT vem se colocando contra as mudanças, dentro de um fórum de entidades em defesa da lei. No próximo dia 23, o grupo se reunirá em Curitiba para avaliar a conjuntura e já recomenda greve nacional dos motoristas em maio de 2014, como forma de pressionar pela manutenção dos direitos. Diferentemente dos protestos de julho de 2013, liderados pelo Movimento Unido Brasil Caminhoneiro (MUBC), do frotista Nélio Botelho, o MPT não apoia bloqueios de estradas ou quaisquer "ações que tirem o direito de outros trafegarem". José Hélio Fernandes, presidente da Associação Nacional dos Transportadores de Carga e Logística (NTC & Logística), lembra que a legislação veio para profissionalizar o setor. "O avanço é inegável, ao quebrar paradigmas antigos, mexendo em um setor essencial ao país", diz. Logo nos 30 primeiros dias de vigência, gerou-se grande polêmica e o governo decidiu apoiar pedidos de revisão, criando comissão parlamentar. "A proposta está na Casa Civil e ninguém sabe como vai sair de lá", adverte.
Vida real Mesmo afrouxada, Fernandes acredita que a lei já imprimiu sua marca. "As empresas procuram cumprir, com dificuldades, ampliando efetivo e convivendo com a falta de estrutura de parada." A fiscalização, testemunha ele, tem ocorrido. Ele não acredita em fim do autônomo, graças à permanência em circulação de velhos caminhões. São compradas 150 mil unidades todo ano. Em oito anos são mais de um milhão agregados à frota, a maioria em reposições. Sobre o deficit de pessoal, ele aposta numa flutuação média de 50 mil a 100 mil, com a atração de jovens após a melhora de salários, esperada para os próximos anos e puxada pela própria escassez, além do esforço de treinamento. O quadro pintado pelo executivo é bem diferente do atual. O brasiliense Moacir Ferreira Costa, 42, por exemplo, deixou há cinco anos de ser motorista de ônibus em Brasília para levar cargas no caminhão de um patrão paulista. "Queria ter minha própria agenda e estava cansado dos constantes carros de lotação quebrados", declara. Apesar disso, confessa que o seu "dinheiro suado só dá para dar de comer a mim e à família". Com uma "Ferrari dos caminhões", como ele define seu veículo de R$ 300 mil, Eduardo Alves Pimenta, 51, nunca viu quadro tão adverso em 29 anos como motorista autônomo. "A coisa toda ficou imoral. Os contratantes não respeitam o combinado e dizem que é pegar ou largar. A lei só serviu aos tubarões das transportadoras", discursa.

Comentários