Artigo na revista Pequi


Lucros de ferro e fogo

Sílvio Ribas

Poucas cidades no mundo têm uma história tão interligada à pecuária como Curvelo. O vilarejo fundado no século 18 por um portentoso e incomum criador de gado – o padre católico Antônio Corvelo de Ávila – ainda hoje é um dos municípios de destaque na região central de Minas Gerais. Chegou a ser capital brasileira dos zebuínos e as marcas desses tempos de glória estão até na bandeira curvelana, que ostenta uma cabeça de boi, símbolo da riqueza local. São lucros obtidos a ferro e fogo, mas que também partilham um pouco da cultura sertaneja, do jeito audacioso de vencer desafios.

Passados mais de 300 anos, a tradicional atividade econômica que ajudou, junto com a mineração, a moldar Minas Gerais, percorre novas trilhas no sertão de João Guimarães Rosa, em busca de oportunidades e sondando futuros. Os números que interessam agora não são necessariamente os das cabeças de animais, mas os índices de produtividade e qualidade genética. A paisagem que se admirava com binóculos no passado vai dando lugar aos horizontes vistos pelos microscópios de modernos laboratórios do agronegócio.

Mas além da mudança de foco e tecnologia, o Brasil campeão mundial na exportação de carnes exige de seus pecuaristas nas mesas de negócios a mesma coragem que têm os vaqueiros ao segurar um boi desgarrado. Alta dos preços das matérias-primas, barreiras comerciais de todo tipo e necessidade de manter a sanidade animal em dia são alguns dos desafios encarados por empresários da região. Uma sintonia fina entre produtores, entidades de classe e governos é obrigatória.

Os currais mineiros no geral ainda têm de vencer problemas históricos, como a necessidade de agregar valor e mudar a realidade de se vender a maioria de seu gado para fora das divisas “em pé”, ou seja, antes do abatedouro. Alguns avanços foram obtidos nos 28 municípios da região de Curvelo graças à capacitação de órgãos como Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG) e Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), além de programas como a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater).

UNIÃO EUROPÉIA – De volta aos desafios maiores, a União Européia (UE) suspendeu a importação de carne brasileira a partir de 1º de fevereiro, após rejeitar uma lista de 2.681 propriedades apresentadas pelo governo brasileiro como aptas a exportar. Em dezembro, o bloco econômico já havia restringido a 300 o número de exportadores, sob a desculpa de deficiências na certificação e rastreamento de origem do gado. Os europeus condicionam o fim do embargo à plena adoção de medidas de rastreabilidade (histórico do gado, cabeça por cabeça) e certificação bovina. As importações só voltaram a ser autorizadas em 27 de fevereiro, mas, mesmo assim, só para poucas fazendas com certificação.

A bancada ruralista da Câmara dos Deputados vem reagindo com firmeza às críticas da Comissão de Agricultura e Desenvolvimento Rural do Parlamento Europeu em relação à carne do Brasil. Os parlamentares defendem a qualidade do produto nacional e lembraram nunca ter havido no País casos da doença da vaca louca, como na Europa. A questão é que o Brasil, com mais 180 parceiros comerciais, se tornou praticamente imbatível.

Com razões econômicas e não sanitárias, o embargo da UE à carne brasileira revela uma competição na qual o preço e o volume da carne brasileira se impõem. Isso, contudo, não significa que o País possa se dar ao luxo de descumprir as regras de saúde animal. O descuido já provocou desastres comerciais. Simples falhas em controle de divisas deixaram Estados inteiros fora de um mercado mundial lucrativo e que, com a ascensão dos gigantes asiáticos China e Índia, além da Rússia, promete ainda mais.

Os parâmetros sanitários do Brasil são baseados em normas internacionais. O transporte para os frigoríficos é todo monitorado e os animais destinados ao mercado exterior são também inspecionados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A determinação segura da origem da carne por meio de um “passaporte” que registra toda movimentação do gado, a rastreabilidade, já se tornou algo rotineiro. O “brinco” identificador virou acessório corriqueiro de bois e vacas.

Há ainda controle da movimentação de animais no Brasil, feita com a autorização do Mapa e exigência da nota fiscal do transportador nos postos de fiscalização. Animais marcados com o símbolo ou as iniciais da propriedade rural ou do produtor garantem mecanismo seguro de controle de origem. Pelo acordo fechado com a UE, os Estados também serão responsáveis pelas auditorias das propriedades que pretendem exportar carne bovina in natura para o bloco econômico.

A medida foi publicada no Diário Oficial da União no dia 2 de maio, por meio da Instrução Normativa da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério. Além dos fiscais federais agropecuários, veterinários dos órgãos de defesa agropecuária dos Estados e do Distrito Federal poderão avaliar o sistema de certificação e os procedimentos das certificadoras credenciadas para checar se há conformidade com o sistema de rastreabilidade (Sisbov).

PREÇOS – A atual elevação no preço da carne bovina – que dos cerca de R$ 47 por arroba em 2007 passou para cerca de R$ 80 – deve-se à recuperação do mercado interno, mas também aos valores das rações cotadas internacionalmente. A carne de frango e a suína usam farelo de grãos como matéria-prima da ração, sendo afetadas pelo aumento dos preços das matérias-primas agrícolas. No caso da carne bovina, o principal custo desse aumento seria a alimentação dos rebanhos, sobretudo no exterior, onde há maior confinamento. No Brasil, apenas 10 milhões das 170 milhões de cabeças fica em regime fechado, quando os animais se alimentam com ração. O restante é criado extensivamente, nos pastos.

A Europa pressiona para tentar forçar uma queda do preço do produto no mercado mundial, mas é difícil implantar a rastreabilidade nos moldes exigidos pelos europeus num país como o Brasil onde quase todo o rebanho é criado ao ar livre. Caso consiga superar esses obstáculos, o País tem largo horizonte à frente, pois ainda está fora de metade do mercado mundial. E não alcançou consumidores atrativos como os dos Estados Unidos, Canadá, Japão e Coréia do Sul – justamente os que melhor remuneram em todo o mundo.

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