Brasília tem passeata pra todo gosto





A democrática agenda de protestos de Brasília, que reúne de sindicalistas a seguidores de seitas, consagrou o transtorno semanal para o trânsito na Esplanada dos Ministérios


Sílvio Ribas, de Brasília

Um dos principais argumentos apresentados pelos críticos da criação de Brasília, que este ano comemora meio século, é o suposto isolamento dos titulares dos poderes da República. Mas esse retrato de distância das massas é contrariado pelas constantes imagens de grandes manifestações públicas às portas dos palácios da capital federal. São passeatas, protestos e outros atos públicos que fazem uma rotina semanal de transtorno no trânsito da Esplanada dos Ministérios. O ultimo mês, por exemplo, ilustrou bem a variedade de eventos com milhares de ativistas, numa agenda que incluiu uma marcha em defesa dos direitos de homossexuais, protestos de servidores públicos e trabalhadores rurais, acampamentos de índios e até caravanas de defensores do chá alucinógeno da seita do Santo Daime.

No último dia 19, cerca de 2 mil gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais de todo o país participaram da 1ª Marcha Nacional Contra a Homofobia. O movimento pediu a garantia do Estado laico (sem interferência da religião) e a aprovação de lei que torna a discriminação crime, além de cobrar do Judiciário posição favorável à união estável entre casais homossexuais. Os adeptos do Santo Daime, por sua vez, fizeram uma “caminhada contra as drogas”, com objetivo de esclarecer sobre o uso “exclusivamente religioso” do seu chá. “Tomamos ayahuasca e não somos drogados” dizia um cartaz.

Apesar de estarem em menor número do que os outros grupos de pressão, os 300 índios acampados há cinco meses em frente ao Ministério da Justiça para protestar contra mudanças na Fundação Nacional do Índio (Funai) fizeram o maior dos barulhos. Eles conseguiram na última terça-feira liminar para dispersar os 80 policiais militares e federais que foram retirá-los do local, cumprindo mandado judicial. A juíza federal Maria Cecília Rocha decidiu pela permanência dos índios em razão de um aspecto cultural: uma menina guajajara de 12 anos, da tribo de Grajaú (MA), teve sua primeira menstruação no último domingo e, segundo a tradição da etnia, deve ficar na tenda por sete dias. Os manifestantes freqüentam a Câmara dos Deputados e chegaram a ser notados, no fim de abril, pela comitiva do presidente venezuelano Hugo Chávez.

Perfil dos ativistas
O governo do Distrito Federal não tem dados precisos, mas acredita que boa parte dos pouco mais de um milhão de turistas que visitam todo ano Brasília carregue bandeiras e faixas, a maioria voltada para o Congresso Nacional. Situado no meio do eixo monumental, principal avenida da cidade, o prédio tem à frente um amplo gramado, palco verde para caminhadas de militantes, instalações temáticas e discursos inflamados sobre carros de som dirigidos a deputados e senadores. Pequenas multidões de grevistas transportados por ônibus fretados e de espectadores de shows folclóricos e celebrações religiosas completam o perfil das concentrações que têm o principal cartão postal da capital como pano de fundo. Lucro certo para hotéis, pousadas, empresas de sonorização e vendedores ambulantes de água e picolé.

Embora esteja a poucos metros de uma área de segurança nacional – vizinha do Palácio do Planalto (sede da Presidência) e no caminho do Alvorada (residência oficial do presidente) – esses eventos não têm barreiras ostensivas. Geralmente duas das seis pistas do eixo são interditadas e não é raro ver policiais vindos até de outros estados não para manter a ordem, mas para também protestar. Os dias preferidos dos ativistas são terça e quarta-feira, aproveitando o fluxo maior de parlamentares. A presença dos estudantes locais tem crescido, sobretudo desde o fim de 2009, com atos de repúdio ao ex-governador José Roberto Arruda (sem partido). Mas os recordistas do bumbo ainda são os filiados das centrais sindicais CUT e Força.

Os protestos ao ar livre de Brasília, que trazem tratoraços, apitaços e panelaços no histórico e viram fotos legendadas de jornal, já atraíram até celebridades de Hollywood. O cineasta James Cameron (Avatar) e a atriz Sigourney Weaver protestaram no dia 12 de abril contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte (PA).




Peso dos manifestantes divide especialistas
As passeatas representam testes para a paciência dos motoristas brasilienses. E o maior deles ocorreu no último dia 12, durante o 16° Grito da Terra, evento organizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) em favor da reforma agrária. Apesar dos esforços da Polícia Militar e dos próprios organizadores, o engarrafamento no trânsito foi inevitável diante do desfile de sete mil manifestantes com apitos e cornetas, acompanhados por dois carros de sons e dois caminhões de água mineral. O evento durou o dia todo.

Com o Itamaraty servindo a eventos da Presidência durante a reforma do Palácio do Planalto, esquemas especiais para receber chefes de Estado também reforçam as complicações de tráfego geradas por manifestações públicas. O melhor exemplo disso foi em dezembro, com o protesto de judeus em frente à sede do Ministério das Relações Exteriores contra a presença do presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad.

Apesar desses acontecimentos, os sociólogos da cidade se dividem sobre o peso da cidadania nessas manifestações. Para Alexandre Barros, professor do Unieuro, as concentrações de milhares em frente ao Congresso não interferem nas decisões dos parlamentares. Para ele, os protestos são organizados na maioria das vezes por agentes de fora de Brasília e representam lobbies legítimos, mas expressamente classistas ou de grupos clássicos de interesse. “Se a capital continuasse no Rio, os políticos ouviriam o grito das ruas”, afirma.

Antonio Flávio Testa, da Universidade de Brasília (UnB) discorda e vê a capital federal como o verdadeiro encontro dos brasileiros. “O sonho do presidente Juscelino Kubitschek deu certo. Não é possível ignorar as manifestações pacíficas e os 2,6 milhões de cidadãos do Distrito Federal”, rebate. Ele lembra que, acostumada a exibir placas de carros de todos os estados, Brasília tem maior equilíbrio nas distâncias com outros grandes centros, como Fortaleza (2,2 mil quilômetros), Recife (2,2 mil), Porto Alegre (2,1 mil) São Paulo (1 mil) e Rio (1,1 mil).

Os especialistas reconhecem que, além das passeatas, a opinião do público se faz presente em atos no Congresso de entidades civis, artistas, líderes de categorias profissionais e até de prefeito e vereadores. E essa mobilização está sendo ampliada por ferramentas digitais, como redes sociais, blogs e mensagens instantâneas. Um exemplo recente do uso intensivo da internet em defesa de uma causa foi a aprovação no Congresso do projeto de lei Ficha Limpa, que impede a candidatura de políticos com problemas com a Justiça. (S.R.)

NB: publicado originalmente pelo Brasil Econômico, edição do dia 5 de junho.

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