Numa esquina da Savassi

Aquela casa vermelha na esquina virou, antes da hora, apenas uma parte do meu passado. Foi uma tradição feita em pouco tempo e que teve um fim ainda mais precoce. Para mim, a notícia do fechamento de A Cafeteria – a eterna Três Corações – no coração da Savassi, para dar lugar à loja da operadora Claro, me atingiu de forma pessoal. Ainda triste com o ocorrido, percebo o quanto me agarrei a esse canto de Belo Horizonte, desde sua inauguração, há nove anos. Conheci lá os donos, os gerentes, os garçons, o barman e toda sorte de convivas. Apesar da crítica geral à qualidade do serviço (leia-se demora no atendimento), a simpatia do lugar ficou para sempre na minha memória afetiva.

As horas felizes na Cafeteria Três Corações consagraram uma conexão especial entre o espaço que fechou as portas no último domingo de outubro e a minha condição de cliente fidelíssimo. Foram tantos encontros, bate-papos memoráveis e ideias anotadas em guardanapos que este texto seria insuficiente ou inadequado para fazer todas confidências vividas lá. Só agora, ao escrever linhas nostálgicas, quase um gesto oficial de despedida, é que surge em minha mente a analogia de três corações. A famosa marca do café inspirada na cidade mineira onde nasceu o Rei Pelé poderia representar uma trindade: eu mesmo, a companhia de mesa e a própria cafeteria. Essa última era o elo entre os dois primeiros.

A boa prosa sempre comparecia. E a paisagem ao redor do estabelecimento era, a meu ver, a melhor de BH. Ponto de chegada para quem flanava nos arredores. Savassiava. Ponto de observação para quem seguia rituais de Roberto Drummond. Ponto de exclamação para quem curtia a noite com cafeína, álcool, fumaça, olhares e um pouco de sereno, caso estivesse do lado de fora. Para mim, foram muitas sessões regadas a Red Label (meu amigo Red, como costumava chamar o uísque companheiro) e de uma intensa vida social. Os dias na conhecida cafeteria da Diogo Vasconcelo, a Praça da Savassi, eram para mim de encontros marcados com amigos de faculdade para almoçar. As tardes de folga e de sábado eram momentos de espírito relaxado e de leitura de jornais e revistas.

Para mim, não podia faltar no cardápio panqueca enrolada, pão de queijo napolitano e, mais recentemente, o sanduíche Kanadani, esse uma receita de Riuiti Kanadani, ex-diretor da Belgo (depois Arcelor Mittal) e assíduo freqüentador do point. Só faltou investir mais em enologia. Os vinhos eram caros e pouco variados. Mas os drinques com café mereceram boas notas. Pelo menos para mim, passou a ser a segunda sucursal mineira da Gazeta Mercantil. Para onde ia entre o suposto fim de expediente e a hora de ir dormir. Também era o lugar da saideira, o último chope da noite ou o café expresso para fechar (Para Nísio, uma trufa de chocolate), quando conseguíamos pegar ainda aberta. Noutras ocasiões, até tentava marcar reuniões em locais diferentes. Mas acabava voltando ao velho endereço...

Excelente centro fomentador de idéias, papos hilários e debates gratificantes, A Cafeteria se tornou, conforme os relatos bem-humorados dos meus amigos, o local do talk-show do Sílvio Ribas. Os entrevistados da noite se revezavam na minha mesa cativa. Podiam ser conhecidos quer eram convidados pelo celular, colegas de trabalho que me acompanhavam no happy-hour ou alguém que acabara de adentrar o recinto para só comprar um maço de cigarros ou fazer uma horinha até encontrar outra pessoa. É... Deixava uma boa parte do meu salário no caixa da Três Corações. Dali para o Táxi e o sono merecido. Até hoje me arrependo de não ter optado pelo clube do uísque e deixar guardado o meu Johnnie Walker.

Descobri com o paulista Ivo Ribeiro, meu chefe de redação da Gazeta Mercantil em Minas, que também compareceu à festa de estréia da cafeteria e só deixou de freqüentar lá quando mudou de Belo Horizonte, o valor da simpatia daquele lugar aconchegante e aberto a todas as tribos, sem que nenhuma delas sobressaísse. Etiqueta parlamentar. Quando fui repatriado para a capital de todos os mineiros, no finzinho de 2002, voltei a dar as caras na cafeteria. Lá volta e meia ocorriam os tais encontros acidentais, com quem passava lá pra fazer uma boquinha ou apenas entrava para ir ao banheiro. “Acho que é uma perda muito grande para o consumidor, pois a praça que ficou consagrada como referência cultural, se virar um centro de telefonia, vai ficar morta depois das sete da noite”, lamentou Cristiano Fonseca, supervisor de Marketing do Café Três Corações no estado, ao jornal Estado de Minas. Endossei e ainda adoço essa opinião.

Parece que A Cafeteria vai ressurgir noutro ponto da Savassi. Mas não será o mesmo ponto, muito menos o mesmo terceiro coração. Uma prova disso? Na minha despedida de Belo Horizonte, em 1998, quando estava de mudança para Florianópolis, ganhei de Wilson, então gerente da época, um kit com xícara e pires com a logomarca tricordiana. Sob olhares de testemunhas, ele me entregou a recordação de forma solene. Em Floripa e em Sampa, para onde fui morar anos depois, elegi as minhas “Cafetererias Três Corações” substitutas. Mas nenhuma dessas tentativas se equiparou à original.

Fiquei muito feliz e orgulhoso em saber quando perguntaram por mim lá depois que me mudei. Também toda vez que voltava à BH, pousava na minha mesa tradicional, onde era tratado como “gente de casa”. Além disso, o lugar cumpria as funções de um café parisiense ou boteco carioca, oferecendo no mesmo lugar convivência, distração, filosofia, e, vá lá, culinária. Tal qual foi o Antonio’s para Tom e Vinícius, o Le Deux Magots para Sartre e Simone de Beauvoir ou o Café Tortoni para Gardel e Borges.

O Café Três Corações, patrocinador de A Cafeteria, mantém um contrato de exclusividade com o dono do local e promete honrar o carinho e a referência do público para fazer ressurgir a marca noutro local. A Claro, por sua vez, estuda criar um espaço de convivência em sua nova loja para servir de link com o passado. Um Café Celular? Talvez. A confirmação da Praça da Savassi como campo de batalha da telefonia móvel na capital mineira, com a presença também ostensiva de Telemig, TIM e Oi, gerou protestos em forma de faixas, abaixo-assinados e depoimentos na mídia. Nos últimos dias de funcionamento do ponto sequer tive coragem de entrar lá para me despedir.

A esquina da Avenida Cristóvão Colombo com a Rua Antônio de Albuquerque não mudou o nome pelo qual ainda era conhecida, quando a marca de café dos mesmos donos foi vendida para um grupo estrangeiro. Acho que assim vai continuar por um tempo. Para definir melhor a minha cafeteria preferida, busco inspiração no Houaiss: “Local público especializado em servir cafés e por vezes outras bebidas, e eventualmente também alimentos que se podem comer rapidamente ou pratos leves”.

A Três Corações era tudo isso e mais. Por isso, longe de ser um testamento, um réquiem, um obituário, esse texto é uma carta de agradecimento a todos que fizeram daquele imóvel um ponto especial no meu tempo e no meu espaço. Uma pausa pro café.

OBS: Era pra ter publicado esse texto há três anos

Foto: Átila Araújo/Google Earth

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