O Ovo da Maricota

Março de 1984. Num dia daquele mês, quando era aluno do ensino fundamental em minha terra natal, a mineirinha Curvelo, assisti com muita atenção junto com todos da Escola Estadual Interventor Alcides Lins, nossa “segunda casa”, uma empolgante história contada pelo professor Sebastião Rocha. Famoso como educador e militante cultural, Tião trabalhava como consultor da Secretaria Municipal de Educação.

Estava saindo da infância e entrando na adolescência, mas até hoje me vem à cabeça o “causo” narrado por aquele visitante barbudo aos estudantes de todas as turmas durante a chamada “hora cívica”. Para se ter uma idéia de como a garotada se envolveu com o papo dele, basta dizer que naquela manhã o divertido palestrante nos fez até cantar “Morte e Vida Severina”, trecho da peça de mesmo nome de João Cabral de Melo Neto.

Tião recordou que, no início dos anos 70, numa de suas andanças pelos grotões do Brasil, por meio do Projeto Rondon, que buscava desbravar as mais escondidas e remotas comunidades brasileiras, levando vacinas, educação e noções de saneamento básico, ele e seu grupo se instalaram num arraial isolado do Norte de Minas Gerais, cujo nome não me lembro. Nesse pedacinho de Brasil que o Brasil não conhece, viviam apenas famílias de humildes agricultores, um padre, um farmacêutico e um funcionário dos Correios, além de um agente ferroviário. O médico visitava o singelo povoado só uma vez por mês. Carro raramente passava por suas ruas de terra.

Mas o que mais impressionou aqueles forasteiros patrocinados pela ditadura militar – enfermeiros, educadores, sociólogos e assistentes sociais – foi um ancião que beirava seus 80 anos, embora se mantivesse “firme e lúcido”. Aquela intrigante figura era, sendo as palavras do narrador Tião, uma mistura de pajé e cacique. Seu Geraldinho morava solitário numa casinha, feita de cobre e latão, onde também funcionava seu escritório, seu ateliê e seu consultório.

Ficava deitado por horas na rede, no fundo de sua curiosa morada, diferente de todas as demais na região, normalmente feitas de tijolos de barro e esterco, conhecidos por adobe. Ele descansava, meditava e atendia suas regulares “consultas” de todos os tipos e de pessoas de todas as redondezas. O velho mestre da comunidade dava gratuitamente esclarecimentos desde como era a maneira correta para se tratar do umbigo do recém-nascido até previsões meteorológicas.

É saboroso imaginar a expressão que Seu Geraldinho usava, conforme relato de Tião Rocha, para dar, todo dia, o seu “boletim do tempo”. O ancião virava para o atento ouvinte e dizia, depois de examinar a “testa da serra”, dar um suspiro e olhar para baixo, coisas do tipo: “Vai chover, sim. Mas só amanhã bem cedinho”. Visualizo aquele decano do arraial como uma espécie de Manuelzão que fazia serviço das tradicionais benzedeiras.

A renda de Seu Geraldinho, que não recebia aposentadoria, vinha da venda de suas pequenas esculturas de barro. Como o chão de sua casinha era de terra batida, assim que começava a chover logo escorria sob sua rede a água que amolecia o solo, tornando-o adequado ao seu artesanato. Deitado, retirava aquela massa e com ela moldava bonecos e vasos. “Pra quê ir ao encontro da vida se ela vem até mim?”, filosofava o sábio de cabelos e barba branca sobre o modo como conseguia matéria-prima para suas obras de arte.

Homem de enorme sabedoria popular combinada a um especial talento de prosador, embora fosse analfabeto “de pai e mãe”, Seu Geraldinho tinha sempre na ponta da língua uma explicação para qualquer dúvida ou problema, fundamentando seus argumentos com experiências pessoais, fenômenos “mágicos” da natureza, o folclore e passagens bíblicas. Ele conseguia compor explanações usando do seu imaginário fértil e de idéias de diferentes origens, deixando tudo muito bem claro e entrelaçado.

Mas esse método analítico do velho sertanejo acabou sofrendo um duro impacto. Certo dia chegou o primeiro aparelho de televisão do arraial, que foi instalado pela Prefeitura na pracinha central, como ocorria em vários lugarejos do interior. No meio da comunidade a TV ficava ligada entre 19 e 21 horas e suas imagens em preto-e-branco e com muito chuvisco atingiram em cheio o conjunto de crenças de Seu Geraldinho. Era informação nova demais pro caboclo sabe-tudo. O que fez? Seu discurso foi se adaptando ao que descobria na janela eletrônica e, ao invés de entrar em crise existencial, nosso personagem vivo passou a visitar toda noite a “máquina de fazer doido”.

A televisão grande onde a população assistia de pé se integrou com rapidez ao repertório do doutor em tudo que merecia se saber. Poucos dias depois da “novidade” ter chegado, já se podia verificar a mudança nos ensinamentos de Seu Geraldinho. O mais interessante que lembro do Tião ter citado é quando o velho expôs a sua versão revisada sobre o Dilúvio do Velho Testamento. Explicava: “Ah, o dilúvio foi o seguinte: por riba do céu, existia grandes pedra de gelo. Num dia, duas delas trombaro, sortando faísca, que abriu um buraco no teto da terra. O gelo derreteu e inundou os terreno tudo. A lua, que também era cheia d'água, ficou seca. Aí o Noé já tava com os bicho todo na arca e se salvou. Nisso, os tar astronauta da Apolo 11 aproveitaro o buracão no meio das nuve mode chegá inté a lua”. Vivendo, vendo e aprendendo.

Viagens espaciais, competições esportivas, anúncios de eletrodomésticos, telenovelas e outras dezenas de fatos ligados ao mundo moderno não eram conhecidas daquele Dom Quixote do século XX, mas que passaram a povoar seus sonhos, juntamente com seu arquivo inicial de memórias, cheio de cavaleiros medievais, dragões e raízes milagrosas.

Voltando à história do Tião... No dia de deixar o arraial e partir para outro logradouro, o professor se despediu de todo o pessoal que conheceu, exceto do Seu Geraldinho, que não conseguiu achar. Estando sozinho na estação ferroviária, depois de ter comprado o bilhete para Belo Horizonte, ele aguardava o trem que iria aparecer em meia hora. Nisso, chegava a galopes o velho líder comunitário. Ôoa! Parou e pulou do seu cavalo castanho para se despediu rapidamente de Tião. “Deus abençoe cês tudo, foi um prazer”, dizia. Antes de voltar à cela, porém, o artesão de muitas facetas colocou na mão dele um ovo embrulhado na palha de milho, que retirou debaixo do braço, da axila mesmo. “A maricota acabou de botar, tá inté quente”, lembrou. E partiu também na carreira.

Tião, boquiaberto com a situação inusitada, não entendia o significado de tudo aquilo. Não era possível ter ficado tanto tempo junto daquela gente e não saber o que representada o tal “Ovo da Maricota”. Tião chorou “feito menino”. E o que iria fazer com o ovo? Comeria? Parecia ser um sacrilégio. Guardaria? Iria apodrecer logo numa gaveta. Chocar? Não saberia como. Aí veio a única solução possível naquele momento: aproximou-se do guichê da estação e encostou o pacotinho num canto do balcão, dizendo ao funcionário da Rede: “Moço, vou deixar isso aqui um minutinho, enquanto pego uma coisa ali. Tudo bem?”.

Retomando o choro, ele foi embora e nunca mais voltou àquele lugar e nem teve idéia do que aconteceu com o Seu Geraldinho ou com o presente carinhoso que ele lhe deu. Mas a lembrança daquele idoso lépido e falador e o enigma do ovo de passarinho tão comum naquela paisagem foram junto com Tião, que, acredito, os guardará para sempre.

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