Uma indústria cabocla

SÍLVIO RIBAS Enviado especial Catalão (GO) O sol nem tinha saído e Tiago Pereira da Silva já estava ao volante de um trator da fazenda do patrão. Ele acordava às três da madrugada, poucas horas após ir dormir, à meia noite, vindo da maior escola pública de segundo grau em Catalão (GO). O metalúrgico de 28 anos hoje comemora o resultado do seu sacrifício para trocar a incerta e mal remunerada labuta no campo pela carreira no chão de fábrica. No começo de 2006, tão logo alcançou a maioridade plena e a escolaridade mínima exigida pela Mitsubishi, montadora de automóveis instalada em seu município desde 1998, deixou a roça e melhorou de vida. Os empregos dessa indústria cabocla atraem cada vez mais gente da zona rural e menos do comércio e dos serviços, em razão da recente subida do custo de vida, sobretudo de aluguéis, puxada pelas grandes empresas que ainda continuam chegando. “No meu caso, o esforço valeu a pena”, suspira Silva, representante do grupo cada vez maior de operários oriundos da lavoura e da pecuária no Sudoeste de Goiás, região com uma das maiores taxas de crescimento econômico do país. Com salário de R$ 980, Tiago Silva lembra que sua renda nominal dobrou ao longo de sete anos, desde a estreia na linha de montagem até a inspeção, sua área atual. Ele e seus colegas valorizam a contínua capacitação profissional que recebem da multinacional japonesa, mas já miram postos locais de comando, dominados pelos funcionários de outros centros, como São Paulo. “Temos produtividade superior à registrada no ABC paulista e merecemos a chance de colaborar também na gestão”, defende João Vítor Felício Silveira, 29, metalúrgico da Mitsubishi desde 2003. Os investimentos industriais e seus efeitos sobre a massa salarial levaram a cidade de 90 mil habitantes ver seu Produto Interno Bruto (PIB) se multiplicar por seis em apenas uma década. A renda per capita local atingiu a marca de R$ 47 mil, superior à da capital paulista (R$ 39,5 mil) e que pode superar a de Brasília (R$ 58,5 mil) nos próximos anos. A variedade e a sofisticação do varejo local chama a atenção e atrai empresários de Uberlândia (MG) e do Distrito Federal. “Cheguei há quatro meses, expulso pela violência do Entorno e pelas oportunidades daqui”, revela Ernestino Branco, que investiu numa distribuidora de bebidas. A crescente presença de gente de fora e o reforço no poder de compra da classe média estão até mudando os hábitos típicos do interior. O calçadão à beira da represa, chamado de Clube do Povo, os aposentados substituíram os jogos de dama pelas saudáveis caminhadas. A baixa criminalidade pode ser atestada pela loja de porta aberta com um singelo aviso de “volto já”. Os hotéis ficam sempre lotados de terça a quinta-feira, quando executivos, consultores e gerentes das matrizes visitam as fábricas. Catalão compõe com as também goianas Anápolis e Itumbiara um promissor pólo automotivo, nascido em 2007 mediante pesados incentivos fiscais do governo estadual. Os três municípios somam um PIB anual de R$ 17,4 bilhões, que corresponde a um quinto da economia de Goiás. A expectativa dos empresários é que o surto industrial no coração do país se torne uma revolução duradoura, tal qual tem sido a abertura da fronteira agrícola no cerrado a partir dos anos 1970. A prosperidade do município tem raízes nos seguidos saltos do agronegócio do Centro-Oeste, mas também ganhou impulso com quatro décadas de exploração de gigantescas jazidas de nióbio e fosfato. Os minérios adubaram o florescimento de processadoras de fertilizantes voltadas ao mercado interno, ainda abastecido pela importação. A Vale tem lá 1,5 mil empregados para extrair rochas essenciais à agricultura moderna. Na mesma trilha, a britânica Anglo American mantém outros 900 funcionários. Ambas produzem 2,5 milhões de toneladas anuais de fosfatados. No fim de 1999, ano seguinte à inauguração da Mitsubishi, a fabricante norte-americana de colheitadoras de cana e pulverizadores John Deere iniciou sua atividade. Com 720 funcionários, a empresa já investiu R$ 60 milhões em aumento de produção e coleciona nos últimos meses recordes de vendas para os mercados interno e internacional. Na porta da fábrica, o movimento constante de longas carretas de contêineres e cegonheiras parece desafiar o pouco espaço de estacionamento externo. Transportadoras trazem peças e levam na volta veículos que custam mais de R$ 1 milhão no trajeto de 800 quilômetros até o Porto de Santos (SP). “Nossa média mensal é de 100 caminhões, mas já ocorreu de chegarmos com 25 num só dia”, revela Marcelo Martins, motorista da Marimex. “Nossos minerais nitrogenados não precisam mais ir até Cubatão para serem usados nas nossas lavouras”, diz Geraldo Vieira Rocha, secretário de Indústria e Comércio do governo municipal. Ele garante que o “crescimento chinês” de Catalão, superior a 10% ao ano, é sustentável graças à qualidade da mão de obra e à rede de ensino. “Das 50 empresas fixadas no distrito industrial, há uma com quase 100% do pessoal de nível superior. Também não temos pedintes ou favelas e nossos hospitais oferecem atendimento complexo a cidadãos dos 14 municípios vizinhos”, informa. O sucesso econômico do município acabou por expor a marginalização no mercado de trabalho daqueles com pouco ou nenhum estudo. É o caso de João Pereira. Analfabeto aos 63 anos, ainda trabalha numa chácara, ao lado da esposa, e agradece a Deus pelos empregos urbanos dos dois filhos. “Estão ficando nas roças só os casais de velhos. Minha maior decepção foi não ter estudado”, relata, emocionado. Ele salienta que, enquanto a informalidade e o piso salarial predominam no campo, ficou caro para fazendeiros contratar serviços de quem mora na cidade. Em duas pequenas propriedades rurais que arrenda, às margens da BR 050 e a poucos quilômetros da Mitsubishi, Dinair Camilo Rodrigues, 49, tira o sustento. Numa delas cria 35 vacas leiteiras e noutra, 45 de corte. “Sem estudo, o trabalhador mais velho não consegue ser chamado pelas empresas grandes”, resume. Ele conta que ficou 10 anos fichado numa fábrica de cerveja, mas acabou voltando para a roça. O retorno esbarrou na pressão das indústrias sobre os preços dos imóveis, que está empurrando a agropecuária para longe. “Um lote não sai por menos de R$ 80 mil ou R$ 50 mil à vista”, reclama. Diante dessa realidade social, a prefeitura investe em cursos gratuitos para capacitar adultos de todas as idades, sobretudo os de baixa renda e do meio rural interessados em confecções. “O vestuário pode absorver quem ficou excluído da agroindústria e das montadoras”, explica o secretário Rocha. Jeancarlo Duarte de Melo, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, calcula que o contracheque médio dos filiados é de R$ 1,3 mil e até R$ 3 mil. Com 2,7 mil funcionários, a Mitsubishi anunciou plano para ampliar a produção dos atuais 180 veículos diários para 300, em cinco anos, com nível maior de nacionalização dos componentes. Será investido R$ 1,2 bilhão na capacidade e na modernização da montagem e na construção de unidades de motores e de pintura. Fonte: Correio Braziliense de ontem

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