A alma do Jornal


Sílvio Ribas


Ele poderia ter sido apenas um comerciante de móveis numa pequena cidade do sertão mineiro. Mas não. Alcançou estatura de grande benfeitor de sua amada Curvelo, ao enveredar pela desafiadora trilha do jornalismo. Após 85 anos de vida, deixou uma contribuição notória ao progresso de sua terra e à valorização de seus conterrâneos, por meio do trabalho perseverante, da informação noticiosa e da oferta generosa de autoestima coletiva.

 

Raimundo Martins dos Santos, o eterno Diquinho, fundador e diretor-presidente do jornal Curvelo Notícias (CN), editado desde maio de 1959, foi, por décadas seguidas, a referência maior da imprensa curvelana. Trata-se de um feito pessoal dificílimo de ser repetido, considerando a avalanche digital a espicaçar a mídia impressa na atualidade.
 
Dono de personalidade muito própria, o empresário e colunista Raimundo Martins militou também na política e como dirigente lojista. Contudo, o que gostava mesmo era de fazer das páginas do CN pontes entre pessoas dentro do município e dessas com o mundo afora, até onde os exemplares do jornal audaciosamente chegavam.
 
“É bom a gente trabalhar pra a terra da gente” era um dos slogans que Diquinho criou e exibia. Mas nada mais preciso do que o do CN, “um jornal que tem alma”. Edição após edição, o nosso mestre buscava e reunia com entusiasmo de principiante os acontecimentos e as ideias brotados em Curvelo ou que simplesmente envolviam os filhos da cidade, onde quer que estivessem.
 
Não é por acaso que nós, jornalistas curvelanos, sempre sentimos a obrigação de prestar tributo à trajetória do periódico local editado e impresso na capital do estado. O CN era e sempre será o nosso orgulho, a página mais íntima de nossa carreira profissional, a raiz afetiva de nosso labor jornalístico. Assim como tantos outros, Diquinho foi aquele que me confiou a primeira oportunidade de trabalho na área.
 
De sua mesa caótica da loja Móveis da Vovó, no número 1.200 da imponente Avenida Álvares Cabral, em Belo Horizonte, Diquinho se convertia em editor-chefe do informativo impresso número um de Curvelo. Caixas de fotos, correspondências e inúmeras laudas e bilhetes datilografados sobre um surrado risque-rabisque compunham o cenário nostálgico da gestação de cada número de CN. Diquinho era a alma do jornal.
 
A sede comercial se constituía também na embaixada informal de Curvelo e o seu proprietário era o lorde mensageiro das conquistas e dos clamores da cidade abençoada pela dupla Santo Antônio e São Geraldo. Seus registros, saídos de uma máquina de escrever portátil e levados às gráficas quase mensalmente revelavam um batalhador incansável pelo reconhecimento dos vultos locais, pela atração de investimentos na economia municipal e pela superação de mazelas cotidianas, como buracos na calçada, infestações de muriçocas e a burocracia a impedir asfaltamento e duplicação de rodovias de acesso.
 
De pena em punho, Diquinho jamais recuou no combate em favor dos interesses do Coração de Minas. Entrou, por exemplo, para a história do país com um gesto corajoso em defesa de Juscelino Kubitschek, em 1971. Ele guardava com carinho a carta do ex-presidente, agradecendo pelo voto decisivo que nosso herói deu “ao vivo” numa competição televisiva para escolher a maior personalidade nacional.
 
A faceta pessoal de Diquinho não era menos interessante. Professor na arte de fazer amigos fraternais, que cultivava através dos tempos, como o colunista Nicolau Neto, cativava a todos com sua cordialidade e sua saborosa prosa. Dos muitos casos que gostava de contar, tinha aquele de ser considerado sósia de Cornel Wilde, o astro de Hollywood que interpretou o lendário trapezista Grande Sebastian no filme O Maior Espetáculo da Terra (1952). Reza a lenda de que teria sido confundido com o ator por transeuntes nas ruas de Buenos Aires, durante uma viagem de turismo.
 
“A” CN, nascida revista, depois “o” CN, obra maior de Diquinho, colecionou inovações editoriais e gráficas, como a rápida passagem do formato standard para o tabloide, pouco conhecido no estado. Por fim, seu acervo de 450 edições acabou se constituindo no maior documento histórico de Curvelo, que merece e deve ser reverenciado e preservado. Devo muito a Diquinho, com quem tinha uma relação de admiração mútua, discorrendo sobre o jornalismo interiorano, sobre a vida e sobre as “curvelanidades”.
 
Senti o desaparecimento dele e rezo para que seu legado tenha o aplauso e a continuidade esperada. Sempre admirei a sua perseverança em manter por tanto tempo sua empreitada jornalística, alçada ao unânime título de elo para todos os curvelanos, mesmo estando muitos longe no tempo e na distância. Por isso, Raimundo Martins dos Santos merece nome de prédio público, nome de rua, busto em praça pública, uma extensa e ilustrada biografia... Enfim, merece tudo de bom mesmo, sem exagero.



 

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