Cabeças no lugar

Por Sílvio Ribas Ai que saudade dos tempos da União Soviética! Era com esse bordão, dito toda vez que algum disparate geopolítico era estampado na mídia, que eu arrancava sonoras gargalhadas do jornalista mineiro Dídimo Paiva. Mestre em cobertura internacional e referência maior da luta dos profissionais da imprensa no Brasil pela liberdade de expressão e de organização durante a ditadura militar, o mais experiente colega de redação do Estado de Minas era também o meu mais ilustre cúmplice na crítica à gradual perda universal de paradigmas. A comunidade de nações perdeu desde a última década do século passado a sua bússola ideológica, cujos ponteiros sempre estavam apontados para o Leste (comunista) e o Oeste (capitalista). Mais do que isso, o pensamento da humanidade era moldado em polos distintos de conservadorismo e contestação, de cujo embate se chegava a avanços nos direitos civis. Até mesmo a produção cultural do planeta confirmava outro paradoxo: em um mundo menos livre que hoje, a arte era mais criativa e sublime. É verdade que, 25 anos após a queda do Muro de Berlim, o mundo prosperou como nunca, distribuindo riqueza e bem-estar, sobretudo aos agora chamados mercados emergentes, uma periferia antes disputada pelo tabuleiro da Guerra Fria e hoje integrada ao capitalismo global. A fome, a miséria e a exclusão de crianças das escolas recuaram de forma impressionante, embora ainda nos desafiem. Também é fato que a democracia se consolidou em muitos países, inclusive neste grande e conturbado torrão. Mas o que mais impressiona é ver a capacidade das contradições, antes confinadas na bipolaridade das superpotências, ressurgirem com novas vestes e ainda procriando mutantes. Sem lógica clara nas motivações, enfrentamentos se multiplicam além das fronteiras óbvias e ódios irrompem do nada para alcançar dimensões aterradoras. A velha chaga árabe-israelense e o belicoso nacionalismo russo assumem versões pioradas e se somam à futilidade consumista, à onipresença de celebridades instantâneas e aos fundamentalistas cruéis. As decapitações em série de inocentes perpetradas pelo califado do Estado Islâmico são a prova mais concreta do estágio atual da insanidade geral. Simbolicamente, essas atrocidades, acompanhadas da larga violência contra a mulher, sobretudo na Ásia e na África, nos alertam da urgência de recolocarmos a cabeça no lugar. E o Brasil, com 50 mil homicídios anuais, não está isento disso. Fonte: Correio Braziliense de hoje

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