Ressaca do milagre

Sílvio Ribas O gigante acordou de mau humor. Depois de uma noite maldormida, levantou-se do berço esplêndido todo desengonçado e queixando-se de tudo. Foi desse jeito que o Brasil confirmou nos últimos dias um recorrente fenômeno de sua economia, no qual períodos generosos de consumo doméstico e de larga inclusão de desfavorecidos são sempre sucedidos pela volta da carestia e pela insatisfação geral com o cenário político. As atuais manifestações de rua têm muitas bandeiras, mas em todas elas está a desconfiança de que os poderes da República, sobretudo o Executivo, perderam o rumo na condução dos anseios populares. O fracasso do governo de plantão em garantir à maioria estabilidade no poder de compra de artigos de primeira necessidade deixa tudo o mais em suspeição. Para completar, a desconfiança também vem do exterior, refletida na piora das contas externas. Com grandes diferenças de contexto e de perfil dos personagens centrais, os episódios de ressaca verificados logo após a fase de bonança são muito parecidos. Assim ocorreu no chamado Milagre Econômico Brasileiro (1968-1973) e no Plano Cruzado (1986), a ressaca agora vem após o mais longo período de estabilização monetária do país, desde o Plano Real (1994). Em todos esses capítulos, políticas econômicas que conferiram popularidade recorde a presidentes se acomodaram nos seus louros e foram sendo, em seguida, exauridas pelas tentações populistas. Erro de avaliação O ponto em comum a todos esses casos emblemáticos está na maneira desastrada dos governantes em avaliar os estertores de um ciclo virtuoso, sem a preocupação de recuar taticamente para garantir avanços na mesma estrada. Os técnicos dos governos Ernesto Geisel (1974-1979), José Sarney (1985-1990) e Dilma Rousseff (2011-2014) sabiam que tinha caído no colo dos chefes de governo a incumbência de fazer a transição entre o surto de prosperidade e o crescimento sustentável. Todos, contudo, optaram pela perigosa prorrogação da euforia, a qualquer custo. Na primeira metade da década de 1970, o Produto Interno Bruto (PIB) avançava a uma taxa média acima de 10% ao ano, com inflação de dois dígitos. Éramos a China do século 20, em trânsito para o clube das potências. A classe média aproveitou para comprar televisor, fogão e o primeiro fusquinha. Mas foi só a cotação do petróleo disparar, para a ditadura pisar o acelerador na hora errada e adubar o descontrole da dívida pública e dos índices inflacionários. Em escala temporal bem menor, outro salto expansionista foi visto com forte intensidade durante o Plano Cruzado, nome da moeda que nasceu amparada pelo heterodoxo congelamento de preços. Até então, nunca se comeu tanta carne e se comprou tanto saco de cimento no Brasil. Em meio a tanta desorganização na lei clássica da oferta e da procura, sobraram ameaças de ministros e de fiscais do Sarney aos "especuladores", como eram chamados os agentes econômicos atropelados pela demanda explosiva. Deu no que deu: estelionato eleitoral e um dragão ainda mais nutrido e destruidor. De volta aos dias de hoje, descobrimos que, de novo, estamos perdendo conquistas importantes por razões de curto prazo e, pior, por pretensões de dirigir os indicadores econômicos pela caneta presidencial. O gatilho puxado pelo aumento das tarifas de transporte público, em São Paulo, já arroxado para abaixo da inflação acumulada, levou mais de um milhão de cidadãos às ruas. Todavia, o que enfureceu os brasileiros não foram os R$ 0,20 sustados dias depois da tarifa. É a inflação em alta, tirando dinheiro do bolso há meses, que mina o crescimento do PIB e a popularidade de Dilma. É verdade que estamos longe do que vivemos no passado, com padrões monetários arrasados e uma década de estagnação. Mas também não podemos perder de vista que a credibilidade perdida pela leniência com os efeitos nocivos de índices "toleráveis" de inflação e pelo protagonismo estatal na estratégia de desenvolvimento precisa ser resgatada com ações firmes na direção contrária. No passado, foram 26 pacotes para domar o dragão e só no atual governo foram 20 para tirar a economia do atoleiro. Estabilidade é a base de tudo, não? Quando havia chance de fazer reformas, na folga internacional que coincidiu o mandato Lula, elas não foram feitas. Nos últimos tempos, mudanças estruturais deram lugar a pacotes paliativos. Desde 1994, o Brasil melhorou muito as suas bases econômicas. A dívida pública deixou de ser uma ameaça ao futuro, a inflação foi acomodada por metas e o governo petista herdou as condições para distribuir renda e promover a fantástica mobilidade social de 40 milhões de cidadãos, levados à classe média. Esse sonho doce acabou quando o último presidente deixou para sua sucessora um PIB de 7,5%? Não necessariamente. É tudo uma questão de escolhas. A má condução da economia deixou claro que o sonho pode virar pesadelo e nos acordar no meio da noite com a boca seca. Resta tomar analgésico e esperar juízo nas próximas festas de consumo. Fonte: Correio Braziliense de hoje

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