O baião dos Beatles


Sílvio Ribas

Sempre existiram fake news, ou seja, notícias falsas. Mas poucos são os grandes boatos que produziram mais efeitos positivos que negativos. O melhor desses casos foi, sem dúvida, quando, em 1968, espalhou-se pelo país a boa nova de que os Beatles iriam gravar Asa Branca, consagrada canção do mestre pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião.

O grupo musical mais popular da história estava, de fato, numa fase de experimentalismo acentuado, tendo lançado o revolucionário álbum duplo Sargent Pepper’s Lonely Heart Club Band no ano anterior. Daí porque ganhou verossimilhança a lorota segundo a qual o famoso quarteto inglês estaria debruçado numa versão para o hino nacional do Nordeste brasileiro.

Especulações de que a obra-prima de Gonzagão sairia no chamado Álbum Branco foram registradas pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 21 de agosto do ano que não terminou. Dizia-se que o brasileiro levaria um adiantamento de US$ 50 mil, uma bolada naquela época, fora os direitos autorais a serem apurados na estratosférica escala beatle.

As fontes da reportagem não diziam de onde veio a eletrizante informação, mas garantiam que partiu de “gente séria”. Pouco depois toda a imprensa do Brasil daria destaque à inusitada conexão artística. Se o sanfoneiro do sopé da serra do Araripe, em Pernambuco, vendeu dois milhões de discos com a canção, que sucesso ela não faria com o quarteto?

Numa avalanche de burburinhos, entrevistas e convites para shows, o velho Lua e Humberto Teixeira, seu parceiro no lamento melódico sobre a trágica seca nordestina, exibiam orgulho com o reconhecimento internacional. “A toada deles (Beatles) parece bastante com as coisas do Nordeste. Até as gaitas de fole lembram a nossa sanfona”, disse Gonzaga à revista Veja.

Passada a euforia inicial, a imprensa fez o seu papel de averiguação um mês depois, arguindo o escritório e a gravadora dos Beatles. Aí a ponte entre Liverpool e Exu ruiu com o solene desmentido oficial, informara o Estadão em 29 de setembro. O empresário Don Kass negou a gravação e o convite para Baden Powell lhes ensinar tocar berimbau. Paul McCartney só admitiu que planejava compor um samba (será que emendou uma piada?).

Noutra oportunidade, Paul reconheceu alguma influência de Bossa Nova, única coisa que conhecia vagamente da música brasileira, em The Fool on the Hill. Muito depois, revelou ser admirador de Naná Vasconcelos (1944-2016), nascido no Recife, eleito oito vezes pela revista americana Down Beat melhor percussionista do mundo e ganhador de oito prêmios Grammy.

A verdade logo apareceu. Era tudo cascata do comunicador Carlos Imperial. Em seu programa Os Brotos no 13, da TV Rio, ele havia soltado a bomba: Blackbird, faixa do último LP dos Beatles, o Álbum Branco, trazia influência sertaneja e o quarteto de Liverpool estudava gravar Asa Branca. A intenção da lenda era reativar a carreira de Gonzagão, esquecido pela mocidade, que preferia ondas musicais como Tropicália, Bossa Nova e iê-iê-iê.

Aproveitando-se da dificuldade de se conseguir informações instantâneas, o apresentador capixaba chegou ao requinte de convencer a banda que acompanhava Ronnie Von a gravar Asa Branca, usando a fita para espalhar a história. Era a volta ao sucesso do sanfoneiro-mor devido à suposta gravação de seu clássico pelos, até hoje, artistas mais famosos do planeta.

Os beatlemaníacos conhecem a história desmentida também pela falta de bootleg e de qualquer citação de alguém ligado aos Beatles. Mas ouvir essa mentira não deixa de ser empolgante pois nos leva a imaginar o que ocorreria se a emblemática canção do sanfoneiro-mor tivesse sido tocada por John, Paul, George e Ringo, com arranjos de George Martin. Que sonho!

Gonzagão sabia da armação e surfou na maré favorável. “Ganhei dinheiro”, admitiu à edição brasileira da revista Rolling Stone. Asa Branca já acumulava outra controvérsia. Composta em 1947, ela seria uma cantiga conhecida na terra natal do ídolo da MPB, tendo apenas ganho melhorias dele e de seu parceiro. Ao longo de décadas, ganharia a voz de 310 intérpretes, sendo o grego Demis Roussos o único gringo a efetivamente gravá-la. White Wings.  

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