Dois por um real

Sílvio Ribas

Um gesto antes de um simples enunciado pintou com cores pesadas uma cena com a qual eu convivia milhões de vezes nos cruzamentos das ruas paulistanas. Um menininho bem pequeno e bem vestido me ofereceu na janela do carro dois tubos de guloseimas “por um real”.

Cato moedas, acompanhado pelos olhos e pela voz dele (contando) até somar o preço pedido. Despejo o dinheiro na mãozinha dele e dispenso o produto comprado. Ele insiste. Falo pra deixar pra lá, vender de novo. Aí ele vem nervoso soltando uma frase cortante: “Vai. Pega logo, tio, pra acabar mais cedo”.

Peguei. Senti-me frágil, quis chorar de remorso ao tomar ciência ali entre duas vias de Pinheiros o que ocorria debaixo dos narizes de milhões e sob o gritante silêncio do Estado que não faz o que deve fazer. Criança na rua, explorada. Infância desperdiçada, futuro comprometido.

Pais opressores, país desnaturado e tudo o mais que sabemos e deixamos pra lá. E cadê o meu humanismo, minha cultura cristã, o espírito crítico e o senso de cidadania? É tudo blá-blá-blá. Tudo falso. Tudo ainda por ser feito.

Deus, por favor, socorra garotinhos e garotinhas como esse que me vendeu duas jujubas coloridas. Tão exposto ele está quanto a mercadoria que vende. É vítima de uma sociedade mais preocupada com o trânsito e com a violência do que com gente.

 (Escrito em 20 de novembro de 2001)


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