Guerra pela água

Os riscos cada vez mais próximos de racionamento de eletricidade, devido ao baixíssimo nível dos reservatórios das hidrelétricas, e de colapso na rede de abastecimento de água para a região metropolitana de São Paulo, a maior do país, deixaram cristalina a crescente insegurança hídrica da população. A crise também derrubou o mito de que o país tem fartura de água doce, por abrigar 12% do estoque disponível no planeta. O drama da escassez já começa a pesar no bolso. E, para superar o perigo de ficar no escuro e de ver as torneiras secarem, os brasileiros são desafiados a poupar o líquido essencial à vida. O problema começa com a distribuição inversa de água e de habitantes pelo território nacional. Enquanto cerca de 80% da população vive no Sudeste, no Sul e no Nordeste, regiões que somam 20% das fontes de recursos hídricos, os demais 20% dos brasileiros estão no Norte e no Centro-Oeste, abastecidos com 80% da oferta. Esse disparate cria inconvenientes para a agricultura, a geração de energia e para o bem-estar das pessoas, sobretudo as residentes nas cidades mais populosas. “O Brasil tem muita água, mas muito mal distribuída. Os sustos trazidos pelo clima escancararam a nossa fragilidade hídrica e cobram campanhas de conscientização permanente, além de investimentos em infraestrutura para minimizar os efeitos tanto de secas quanto de enchentes”, afirma Hélio Mattar, presidente do Instituto Akatu, voltado à promoção do consumo responsável. Embora existam povos com demanda por habitante até três vezes mais alta, o brasileiro pode ser visto como desperdiçador: o consumo nacional é o dobro do recomendado pelas Nações Unidas, de 100 litros diários por pessoa. Enquanto o setor industrial coleciona avanços no uso racional da água, buscando reduzir custos e agregar valor ambiental à atividade, a sociedade ainda tem um longo caminho a percorrer. “Quando requeridos das pessoas, os esforços ganham dimensão mais complexa, pois exigem mudanças educacionais e culturais”, acrescenta Mattar. Populismo Cláudio Frischtak, diretor da consultoria Inter.B, também considera essencial envolver a sociedade no debate sobre a crise hídrica. Mas acrescenta que é preciso, desde já, reajustar as tarifas para refrear a demanda e, assim, evitar o pior, tanto para a geração de eletricidade quanto para o consumo de água. Friscktak lamenta a decisão brasileira, tomada há alguns anos, por pressão de organizações sociais ligadas ao meio ambiente, aos povos indígenas e a comunidades deslocadas por barragens, de construir hidrelétricas com reservatórios menores, conhecidas como fio d’água. Para ele, a crise energética deve ser creditada ainda ao “erro monumental” do governo, que, por motivação política, reduziu arbitrariamente as tarifas de energia num quadro de demanda em alta. “O populismo elétrico está cobrando uma conta altíssima do Tesouro, e a hesitação do Planalto em corrigir a situação só agrava o problema”, protesta. “Assistimos, nos últimos anos, a uma situação de extremos, com enchentes no Norte e estiagens prolongadas no Sul e no Sudeste. O assustador é que essa realidade tende a ser mais recorrente nos próximos anos”, alerta Marco Neves, assessor especial da presidência da Agência Nacional de Águas (ANA). O órgão regulador propõe ao governo a criação de uma rede nacional de reservatórios para garantir de suprimento à população, como item prioritário da política nacional de recursos hídricos. Neves ressalta que, além de principal “combustível” para a geração de eletricidade no país, cuja oferta é 70% concentrada nas hidrelétricas, a disponibilidade de água também é um dos diferenciais que tornam o Brasil um dos maiores produtores mundiais de alimentos. Mas, para assegurar a hidratação das pessoas, a ANA defende a construção de adutoras e barragens, com o devido licenciamento ambiental, para regularizar e redistribuir estrategicamente a oferta por todo o país, incluindo o controle de cheias e de secas prolongadas. Reflexão A falta de chuvas e o declínio histórico do nível dos lagos artificiais das hidrelétricas já projetam uma conta superior a R$ 30 bilhões por conta da energia térmica adicionada ao sistema neste ano, além de ameaçar o país com cortes de luz no segundo semestre. Em São Paulo, a estiagem levou o Sistema Cantareira, responsável por 70% do abastecimento de água da capital do estado, ao menor nível dos últimos 10 anos — 15% da capacidade. As medidas de incentivo à economia anunciadas pelo governo paulista foram insuficientes para evitar afastar a ameaça de racionamento. O governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), solicitou autorização à ANA para captar água do Rio Paraíba do Sul, na divisa com o Rio de Janeiro para abastecer o Cantareira. A proposta, no entanto, esbarrou num conflito federativo. O então governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) reagiu, apontando o que considerou uma ameaça à principal fonte de abastecimento da capital fluminense. Para Márcio Pereira, especialista em meio ambiente do L.O. Baptista-SVMFA, falta foco estratégico no planejamento nacional de usos dos recursos hídricos. “Apesar de os comitês de bacia mobilizarem a população, o marco regulatório não avançou na criação de mecanismos para superar conflitos entre usos diversos da água, como as brigas entre irrigação e geração elétrica e o impasse entre as duas maiores metrópoles do país”, citou. “Precisamos de ações permanentes e efetivas, com melhor gestão dos recursos hídricos, comprometimento maior dos governos na implantação de infraestrutura e de políticas coerentes, além de uma reflexão de empresas e cidadãos sobre o desperdício”, resume Germano Hernandes Filho, membro do Comitê Federal da Bacia do Rio Grande. Ele observa que é urgente, por exemplo, conter as perdas com roubos e vazamentos nos dutos das companhias de saneamento, estimados em 40% na média, segundo o Instituto Trata Brasil. Fonte: Correio Braziliense de hoje

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