Amor de Rosa por Minas
Sílvio Ribas
Em texto publicado em 25 de agosto de 1957, na revista O Cruzeiro, João Guimarães Rosa faz uma belíssima declaração de amor a
Minas Gerais, seu estado natal e palco principal da sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, o
romance mais importante da literatura brasileira.
Minas Gerais por João
Guimarães Rosa
Minas é a montanha,
montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o
esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas,
caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos
amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas,
Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça
brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heroica Província, Formosa Província.
O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de
celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS:
patriazinha. Minas — a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas — a gente não
sabe.
Sei, um pouco, seu
facies, a natureza física — muros montes e ultramontes, vales escorregados, os
andantes belos rios, as linhas de cumeeiras, a aeroplanície ou cimos
profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos — a teoria dessa paisagem.
Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes, que de algumas já roubaram: Maria
da Fé, Sêrro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Corações do Rio
Verde, São João del Rei, Mar de Espanha, Tremendal, Coromandel, Grão Mogol,
Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros,
Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do
Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa
Esperança… Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a
raiz do assunto. Soubesse-a, mais.
Sendo, se diz, que
minha terra representa o elevado reservatório, a caixa-d’água, o coração
branco, difluente, multivertente, que desprende e deixa, para tantas direções,
formadas em caudais, as enormes vias: o São Francisco, o Paranaíba e o Grande
que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, os afluentes para o Paraíba, e
ainda; — e que, desde a meninice de seus olhos-d’água, da discrição de brejos e
minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora
plácida.
Sobre o que, em seu
território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe
transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na
geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil.
Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas.
São, pelo menos, várias Minas.
A que via geral se
divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, das comarcas mineradoras,
toda na extensão da chamada Zona Mineralógica, a de montes de ferro, chão de
ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras de córregos que
dão ainda lembrança da formosa mulher subterrânea que era a Mãe do Ouro,
deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à porta dessas
velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o trabeculado de morros, sob
picos e atalaias, aos dias longos em nevoeiro e friagem, ao sopro de
tramontanas hostis ou ante a fantasmagoria alva da corrubiana nas faces de
soalheiro ou noruega, num âmbito que bem congrui com o peso de um legado
severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias, procissões, oratórios,
pelourinhos, ladeiras, jacarandás,
chafarizes realengos, irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica,
musas entrevistas, estagnadas ausências, música de flautas, poesia do esvaziado
— donde de tudo surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do longe,
quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um
intimativo nostalgir-se, que vem de níveis profundos, a melancolia que coerce.
Essa — tradicional,
pessimista talvez ainda, às vezes casmurra, ascética, reconcentrada, professa
em sedições — a Minas geratriz, a do ouro, que evoca e informa, e que lhe tinge
o nome; a primeira a povoar-se e a ter nacional e universal presença, surgida
dos arraiais de acampar dos bandeirantes e dos arruados de fixação do reinol,
em capitania e província que, de golpe, no Setecentos, se proveu de gente vinda
em multidão de todas as regiões vivas do país, mas que, por conta do outro e
dos diamantes, por prolongado tempo se ligou diretamente à Metrópole de
além-mar, como que através de especial tubuladura, fluindo apartada do Brasil
restante. Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos
trazedores de bois, de numerosíssimos judeus manipuladores de ouro, de
africanos das estirpes mais finas, negros reais, aproveitados na rica
indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro mineirão,
mineiro da gema, com seus males e bens. Sua feição pensativa e parca, a seriedade
e interiorização que a montanha induz — compartimentadora, distanciadora,
isolante, dificultosa. Seu gosto do dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e
cautela — de vez que de Portugal vinham par ali chusmas de policiais, agentes
secretos, burocratas, tributeiros, tropas e escoltas, beleguias, fiscais e
espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar, intrigar, punir, taxar, achar
sonegações, desleixos, contrabandos ou extravios do ouro e os diamantes, e que
intimavam sombriamente o poder do Estado, o permanente perigo, àquela gente
vigiadíssima, que cedo teve de aprender a esconder-se. Sua honesta astúcia
meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo
inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades
tristes, entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma
encapotada, posto que urbanos e polidos. Sua carta de menos. Seu fio de barba.
Sua arte de firmeza.
É a Mata cismontana,
molhada de ventos marinhos, agrícola ou madeireira, espessamente fértil. É o
Sul, cafeeiro, assentado na terra-roxa de declives ou em colinas que europeias
se arrumam, quem sabe uma das mais tranquilas jurisdições da felicidade neste
mundo. É o Triângulo, avançado, forte, franco. É o Oeste, calado e curto nos
modos, mas fazendeiro e político, abastado de habilidades. É o Norte,
sertanejo, quente, pastoril, um tanto baiano em trechos, ora nordestino na
intratabilidade da caatinga, e recebendo em si o Polígono das Secas. E o Centro
corográfico, do vale do Rio das Velhas, calcário, ameno, claro, aberto à
alegria de todas as vozes novas. É o Noroeste, dos chapadões, dos campos-gerais
que se emendam com os de Goiás e da Bahia esquerda, e vão até ao Piauí e ao
Maranhão.
Se são tantas Minas,
porém, e, contudo, uma, será o que a determina, então, apenas uma atmosfera,
sendo o mineiro o homem em estado minasgerais? Nós, os indígenas, nem sempre o
percebemos. Acostumaram-nos, entretanto, a um vivo rol de atributos, de
qualidades, mais ou menos específicas, sejam as de: acanhado, afável, amante da
liberdade, idem da ordem, antirromântico, benevolente, bondoso, comedido,
canhestro, cumpridor, cordato, desconfiado, disciplinado, desinteressado,
discreto, escrupuloso, econômico, engraçado, equilibrado, fiel, fleumático,
grato, hospitaleiro, harmonioso, honrado, inteligente, irônico, justo, leal,
lento, morigerado, meditativo, modesto, moroso, obstinado, oportunidade (dotado
do senso da), otário, prudente, paciente, plástico, pachorrento, probo,
precavido, pão-duro, personalista, perseverante, perspicaz, quieto, recatado,
respeitador, rotineiro, roceiro, secretivo, simples, sisudo, sensato, sem
pressa nenhuma, sagaz, sonso, sóbrio, trabalhador, tribal, taciturno, tímido,
utilitário, virtuoso.
Sendo assim, o mineiro
há. Essa raça ou variedade, que, faz já bem tempo, acharam que existia. Se o
confirmo, é sem quebra de pejo, pois, de mim, sei, compareço como espécime
negativo.
Reconheço, porém, a
aura da montanha, e os patamares da montanha, de onde o mineiro enxerga.
Porque, antes de mais, o mineiro é muito espectador. O mineiro é velhíssimo, é
um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza. É uma gente
imaginosa, pois que muito resistente à monotonia. E boa — porque considera este
mundo como uma faisqueira, onde todos têm lugar para garimpar. Mas nunca é
inocente. O mineiro traz mais individualidade que personalidade. Acha que o
importante é ser, e não parecer, não aceitando cavaleiro por argueiro nem
cobrindo os fatos com aparatos. Sabe que “agitar-se não é agir”. Sente que a
vida é feita de encoberto e imprevisto, por isso aceita o paradoxo; é um
idealista prático, otimista através do pessimismo; tem, em alta dose, o amor
fati. Bem comido, secularmente, não entra caninamente em disputas. Melhor,
mesmo — não disputa. Atencioso, sua filosofia é a da cordialidade universal,
sincera; mas, em termos. Gregário, mas necessitando de seu tanto de solidão, e
de uma área de surdina, nos contatos verdadeiramente importantes. Desconhece
castas. Não tolera tiranias, sabe deslizar para fora delas. Se precisar, briga.
Mas, como ouviu e não entendeu a pitonisa, teme as vitórias de Pirro. Tem a
memória longa. Não tem audácias visíveis. Ele escorrega para cima. Só quer o
essencial, não as cascas. Sempre frequentado pelo enigma, pica o enigma em
pedacinhos, como quando pica seu fumo de rolo, e faz contabilidade da
metafísica; gente muito apta ao reino-do-céu. Não acredita que coisa alguma se
resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas voltam, que a vida
dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Até sem saber que o faz, o
mineiro está sempre pegando com Deus. Principalmente, isto: o mineiro não
usurpa.
Mas, entretanto,
cuidado. Falei em paradoxo. De Minas, tudo é possível. Viram como é de lá que
mais se noticiam as coisas sensacionais ou esdrúxulas, os fenômenos? O diabo
aparece, regularmente, homens ou mulheres mudam anatomicamente de sexo, ocorrem
terremotos, trombas-d’água, enchentes monstras, corridas-de-terreno, enormes
ravinamentos que desabam serras, aparições meteóricas, tudo o que aberra e
espanta. Revejam, bem. Chamam a seu povo de “carneirada”, porque respeita por
modo quase automático seus Governos, impessoalmente, e os acata; mas, por
tradição, conspira com rendimento, e entra com decisivo gosto nas maiores
rebeliões. Dados por rotineiros e apáticos, foram de repente à Índia, buscar o
zebú, que transformaram, dele fazendo uma riqueza, e o exportam até para o
estrangeiro. Tidos como retrógrados, cedo se voltaram para a instrução escolar,
reformando-a da noite para o dia, revolucionariamente, e ainda agora dividindo
com São Paulo o primeiro lugar nesse campo. Sedentários famosos, mas que se
derramaram sempre fora de suas divisas estaduais, iniciando, muito antes do
avanço atual, o povoamento do Norte do Paraná, e enchendo com suas colônias o
rio, São Paulo, Goiás e até Mato Grosso. Pacíficos por definição, tiveram em
sua Força Pública militar, pressianamente instruída e disciplinada, uma
formidável tropa de choque, tropa de guerra, que deu o que temer, e com larga
razão. E, de seus homens políticos, por exemplo, veem-se atitudes por vezes
imprevisíveis e desconcertantes; que não serão anômalas, senão antes marcas de
sua coerência profunda — a única verdadeiramente com valibilidade e eficácia.
Disse que o mineiro
não crê demasiado na ação objetiva; mas, com isso, não se anula. Só que mineiro
não se move de graça. Ele permanece e conserva. Ele espia, indaga, protela ou
palia, se sopita, tolera, remancheia, perrengueia, sorri, escapole, se retarda,
faz véspera, tempera, cala a boca, matuta, destorce, engambela, pauteia, se
prepara. Mas, sendo a vez, sendo a hora, Minas entende, atende, toma tento,
avança, peleja e faz.
Sempre assim foi. Ares
e modos. Assim seja.
Só, e no mais: sem ti,
jamais nunca — Minas, Minas Gerais, inconfidente, brasileira, paulista,
emboaba, lírica e sábia, lendária, épica, mágica, diamantina, aurífera,
ferrífera, ferrosa, férrica, balneária, hidromineral, jê, puri, acroá, goitacá,
goianá, cafeeira, agrária, barroca, luzia, árcade, alpestre, rupestre,
campestre, de el-rei, das minas, do ouro das minas, das pretas minas, negreira,
mandigueira, moçambiqueira, conga, dos templos, santeira, quaresmeira,
processional, granítica, de ouro em ferro, siderúrgica, calcárea, das perambeiras,
serrana bela, idílica, ilógica, translógica, supralógica, intemporal, interna,
leiteira, do leite e da vaca, das artes de Deus, do caos calmo, malasarte,
conjuradora, adversa ao fácil, tijucana, januária, peluda, baeteira, tapiocana,
catrumana, fabril, industriosa, industrial, fria, arcaica, mítica, enigmática,
asiática, assombrada, salubre e salutar, assobradada, municipal,
municipalíssima, paroquial, marília e heliodora, de pedra-sabão, de hematita
compacta, da sabedoria, de Borba Gato, Minas joãopinheira, Minas plural, dos
horizontes, de terra antiga, das lapas e cavernas, da Gruta de Maquiné, do
Homem de Lagoa Santa, de Vila Rica, franciscana, barranqueira, bandoleira,
pecuária, retraída, canônica, sertaneja, jagunça, clássica, mariana, claustral,
humanista, política, sigilosa, estudiosa, comum, formiga e cigarra,
labiríntica, pública e fechada, no alto afundada, toucinheira, metalúrgica, de
liteira, mateira, missionária, benta e circuncisa, tropeira, borracheira,
mangabeira, comboieira, rural, ladina, citadina, devota, cigana, amealhadora,
mineral e intelectual, espiritual, arrieira, boiadeira, urucuiana,
cordisburguesa, paraopebana, fluminense-das-velhas, barbacenense,
leopoldinense, itaguarense, curvelana, belo-horizontina, do ar, do lar, da saudade,
do queijo, do tutu, do milho e do porco, do angu, do frango com quiabo, Minas
magra, capioa, enxuta, groteira, garimpeira, sussurrada, sibilada, Minas
plenária, imo e âmago, chapadeira, veredeira, zebuzeira, burreira, bovina,
vacum, forjadora, nativa, simplória, sabida sem desordem, sem inveja, sem
realce, tempestiva, legalista, legal, governista, revoltosa, vaqueira,
geralista, generalista, de não navios, de não ver navios, longe do mar, Minas
sem mar, Minas em mim: Minas comigo. Minas.
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