Você é alguém?
Quando éramos garotos, nossos pais cobravam da
gente a mais absoluta dedicação aos estudos e ao
trabalho para sermos "alguém na vida". Admito que a
mesma cobrança continua sendo feita às novas
gerações, mas de forma menos ostensiva, apesar de a
competitividade profissional e de a busca por um
"lugar no mundo" terem adquirido dimensão
dramaticamente mais ampla.
O que não mudou é que todos nós somos, de uma
forma ou de outra, agentes da própria história, mesmo
quando não fazemos nada em favor dela. Somos
donos do próprio nariz até mesmo preferindo viver à
custa de terceiros narizes. O outro, por sua vez, deve
ser visto como agente potencialmente importante para
a nossa existência, ainda que o egoísmo nos faça
economizar um sorriso ou um simples bom-dia. Cada
indivíduo é um mundo a ser desvendado.
Fiz esse sermão todo para contar episódio engraçado
que ilustra a dominante cultura urbana do momento,
que converte cidadãos em espectadores da
frugalidade alheia e exibicionistas compulsivos. Um
amigo aguardava o voo na sala de embarque do
aeroporto quando notou uma senhora que não parava
de encará-lo. "Deve estar me confundindo com alguém
conhecido", pensou ele. Não demorou para que ela se
aproximasse e dirigisse uma pergunta em forma de
saboroso disparate. "Você é alguém?", disse a idosa
acompanhada de uma criança com a câmera digital na
mão.
Se fosse eu, responderia com sarcasmo que a
indagação sugeria: "Não, minha senhora. Não sou
ninguém". Surpreendido e constrangido com a
situação, ele apenas decepcionou quem o abordou,
que nem sequer pediu desculpas. É. Com tanta
celebridade instantânea a nosso redor, que brota todo
dia na internet e toma espaço dos talentos verdadeiros
da arte, da política e do meio acadêmico, as ocasiões
ridículas ganham as formas mais absurdas.
O amigo em questão é valioso cantor de Itabirito (MG),
com vasta obra musical e parcerias com grandes
gênios da MPB. Não tem toda a notoriedade que
merece, mas quase lhe pediram para posar numa foto
e conceder autógrafo, apenas por se parecer,
provavelmente, com um BBB. Pior que até isso se
banalizou, pois existem quase duas centenas de exintegrantes
do reality show no ar desde 2002.
Fonte: Correio Braziliense, de 2 de janeiro de 2014.
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