Olhos de menino


A criatividade capaz de transformar o mundo ao redor sempre nos acompanhou na infância feliz no sertão mineiro de Curvelo. Com os olhos de menino, enxergávamos muito além da imaginação, desafiávamos o óbvio e encontrávamos diversão em coisas cotidianas.  

Como simples salão de beleza se tornava estação espacial? O grande secador de cabelo virava capacete de astronauta à espera de ser usado numa missão intergaláctica. O monjolo da fazenda se tornava com facilidade o poderoso martelo de Golias, capaz de derrotar qualquer exército imaginário. E o que dizer do moedor de carne manual preso à mesa da cozinha? Ele ganhava a forma de imponente tiranossauro de ferro, pronto para assustar presas invisíveis.

A nossa inventividade infantil não tinha limites. Um inocente farinheiro de mesa podia facilmente se transfigurar em disco voador ou em tanque de guerra de madeira, tal qual concebido por Leonardo Da Vinci. Até a simples palheta de jogo de botão virava misteriosa hóstia preta. De igual forma, o balde plástico vermelho se convertia em chapéu folclórico turco e os trançados do escovão eram a peruca colorida de palhaço.

Mesmo as ferramentas prosaicas podiam ganhar novos e inesperados papéis nas mãos da garotada imaginativa. O suporte vertical de samambaia a nós parecia o esqueleto de um robô futurista, os tênis sem cadarço se transformam em incríveis carros conversíveis para corridas de rua e o toco de pau boiando se confundia com um ameaçador jacaré.

As associações sem fim alcançavam de pecinhas a trambolhos. Vejamos mais. Os frascos de esmalte adquiriam a função de botões seletores em aparelhos eletrônicos fictícios, ativando comandos. E quando a chuva caía e as ruas calçadas de pedra eram tomadas pelas enxurradas, os calças-curtas viam nesse cenário corredeiras emocionantes prontas para serem navegadas com folhas secas no modo jangada ou barquinhos de papel.

Temos ainda um clássico da brinquedoteca de improvisos. Era a união de manguinhas verdes e palitos de fósforo para criar adoráveis vaquinhas, cavalinhos, bezerros e peões. Menos comum era atribuir aos sacos de areia do aparelho de tração a concretização de torturas ou pesos para os exercícios físicos por nós inventados quando éramos pequenos. Que nunca fechemos os olhos para esse inocente olhar.

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