Promessas da primavera digital


Antônio Carlos Jobim (1927-1994) anteviu o Google Translator lá no alvorecer dos anos 1970. Durante entrevista televisiva ao jornalista Roberto D’Avila o maestro contou que, depois de todo esforço próprio para fazer a versão em inglês (também antológica) do seu clássico Águas de Março (1972), sonhou ter um computador no qual palavras pudessem ser inseridas para, logo depois, se obter instantaneamente a tradução delas em qualquer outro idioma. Segundo ele, pouparia tempo e abriria novas possibilidades.

Corta para 2022. Com tanta facilidade e rapidez agora para se acessar informações de todo tipo, pergunto se gênios criativos como Tom, cujas obras são louvadas em todo o mundo, seriam ainda mais prolíferos na atualidade? A resposta aparentemente óbvia é “sim, claro”. Mas receio que outra questão se ergue nestes tempos de conexão digital onipresente e universal: onde estão os artistas de genialidade ímpar florescidos na primavera digital? Eles existem, mas estão sendo submersos em realidades cada vez mais líquidas.

Ouso responder que a mesma ferramenta esplêndida em favor da criação artística, proporcionada pelas novas tecnologias, também conspira contrariamente à medida que desvia o olhar do artista para searas estéreis. O tempo de ler e escrever se esvai pela necessidade de excluir e-mails falsos e checar notificações mil no celular. Mas o pior de tudo é que a crescente dificuldade em perceber o horizonte candente do pôr do sol, o orvalho da manhã e o vapor da chaleira nos rouba a matéria prima da criatividade.

Curiosamente, também em outro vídeo largado no YouTube e mediado por D’Avila, Jobim revela que se tornou músico esplendoroso por um motivo indesejável. Sua infância reclusa na luminosa e festiva cidade do Rio mais as improváveis aulas particulares de piano na garagem, herdadas com a recusa da irmã, alargaram o seu interior e deram-lhe foco em meio ao reino de saudáveis distrações. Receio que o drama atual é viver a reclusão para se admirar o brilho de águas de um lago profundo, sem delas se querer pescar os tesouros de todas as eras. Viva a Bossa Nova.


Fonte: https://crania.com.br/author/silvioribas/

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