A potência vermelha

Por Sílvio Ribas A troca de comando no poder central para os próximos dez anos, iniciada com o 18º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), não está entre os assuntos preferidos dos cidadãos do país mais populoso do mudo, seja em encontros formais ou mesmo em jantares descontraídos. Com quase 90 milhões de filiados, a onipresente agremiação é o agente exclusivo das mudanças e o dono da festa. Tal qual na bandeira nacional da China — onde figura como a estrela dourada maior, em torno da qual gravitam outras quatro menores, representando o povo —, o PCC guarda as glórias da república popular, domina a vida cotidiano e planeja o futuro de todos. Mas apesar de a transição de governo na segunda maior economia do planeta não despertar debates e manifestações públicas como as conhecidas nas democracias ocidentais, as aspirações de 1,3 bilhão de habitantes não deixam de ser percebidas e até mesmo avaliadas pelas autoridades máximas. O orgulho da população com o crescimento econômico recorde por quase duas décadas seguidas e os frutos dessa prosperidade é evidente. É na juventude que se percebe melhor o paradoxal desfrute do luxuriante capitalismo chinês do qual o aparelho comunista é sócio. Com cortes de cabelo arrojados, roupas de grife e interesse em celebridades globais, os jovens das maiores cidades do antigo Império do Meio esperam um futuro com ainda mais chances de consumo, independentemente do espaço que o sistema político venha a lhe reservar. Para resumir esse desejo, basta uma pergunta direta: "você é feliz?". A resposta dada por um recém-formado em Letras pela Universidade de Pequim é tão clara quanto desconcertante: "Mais ou menos, como todo jovem chinês na atualidade". A razão disso, segundo ele, está nas limitações de renda se comparada a países de moeda mais forte que o seu artificialmente desvalorizado iuan. "Com o mesmo salário nominal, os brasileiros podem comprar seis vezes mais nos Estados Unidos", resume o rapaz, que não pode ser identificado. O avanço da classe média chinesa, que impulsiona o turismo interno e o varejo de marcas globais, explica novos comportamentos. O dia a dia dos chineses é repleto também de conteúdo capitalistas em publicidade, nos seriados e filmes norte-americanos e nas revistas locais de entretenimento. Xangai, primeira célula dos encontros do PCC, é hoje a mais completa tradução desse frenesi consumista, incluindo o majestoso shopping Super Brand Mall, onde até havaianas são vendidas como artigo de luxo, e apartamentos no complexo financeiro de Pudong, de R$ 70 mil o metro quadrado.
Desde a simplicidade de um velho soltando pipa ao adolescente bem vestido da Apple Store, o profano do capitalismo convive em harmonia com o sagrado comunista, com reverência à símbolos da revolução de 1949 e ao líder Mao Tsé-Tung. As romarias de milhões de chineses à Cidade Proibida, um marco da república, é uma prova de que o status quo é, sim, popular. Isso tudo apesar da vigilância de câmeras de vídeo e barricadas, da insatisfação com o serviço de saúde pública, a preocupação com a previdência social e a constante censura à imprensa e à internet. Exemplo disso foi a retirada súbita do ar da reportagem da CNN sobre a paródia do hit Gangnam Style feita pelo dissidente Ai Weiwei. Na Praça da Paz Celestial, uma curiosa placa sinaliza 15 proibições, como jogar futebol e tocar corneta e andar com cachorro. Tudo na santa paz. Por outro lado, o emergente desconforto com a corrupção partidária e a falta de meritocracia para ocupar cargos reservados a apadrinhados não ameaça os governos. Como nenhum controle estatal consegue ser 100%, sobretudo em tempos de redes sociais (mesmo bloqueadas) e trocas comerciais intensas entre os países, o mercado negro da China pode ser visto à luz do dia. A melhor prova disso são as proscritas prostitutas em saguões de hotéis cinco estrelas e os anúncios colados nas calçadas de venda de carros adulterados. A vergonha dos pedintes, sobretudo deficientes físicos, também é um elemento incluso ao capitalismo reinante. Um contraponto talvez é o avanço de fundações filantrópicas patrocinadas por novos ricos, que ajudam a cuidar de idosos em asilos e a pagar cirurgias em crianças. O que realmente conta para o chinês comum é poder comprar. Um sonho visível é levar para casa um automóvel fabricado por uma das mais de 50 montadoras instaladas no país. Reflexo óbvio disso é o trânsito caótico, com buzinadas constantes e uma onda de veículos de duas e três rodas margeando os carros. A expansão imobiliária também redesenha rápido bairros inteiros de Pequim e Xangai, substituindo prédios decadentes, onde moram sobretudo idosos, por torres espelhadas e de arquitetura inusitada. No interior, florescem comunidades como a de Zhang Bei, no norte, onde surgem do nada avenidas largas e prédios vistosos, em menos de um ano. Nessa marcha da riqueza doméstica, até o invadido Tibet virou uma Disneylândia chinesa, com temas para desenhos animados e meca para 8 milhões de turistas por ano. O caixa do PCC também lucrou com essa ascensão material da China, melhor ilustrada pelo interminável baile de inúmeros guindastes em canteiros de obras espalhados por todo o território e a persistente névoa seca das chaminés de fábricas e usinas térmicas. O investimento no parque produtivo e na atração de capitais estrangeiros injetou recursos na propaganda oficial comunista e uma roupagem mais moderna à sua ação. Nem o mais saudosista militante de esquerda do Ocidente poderia sonhar ver surgir uma burocracia tão vistosa, com suntuosas sedes em municípios de porte "médio" para os padrões locais (em torno de 6 milhões de habitantes) e dona de uma rede de gigantescos painéis eletrônicos espalhados em praças e estações ferroviárias. O paradoxo entre o governo movido apenas por engrenagens internas e a agressividade de empresas locais para conquistar consumidores nos mercado interno e, sobretudo, externo é mesmo difícil de se compreender pelas lentes do estrangeiro. Basta dar uma volta por qualquer quarteirão para estranhar a repetida presença de policiais militares com suas fardas verdes. Sozinho ou em duplas, circulando ou postados no chão ou em pedestais, eles são a segurança dada pelo Estado ao povo e a si mesmo.
Além da presença ostensiva nas fronteiras e nas ruas de todo o país, as forças armadas chinesas também gozam de importante espaço na mídia e nos corações dos cidadãos. Os militares parecem aos olhos da maioria como a encarnação do patriotismo nacional e ainda exibem boa desenvoltura na comunicação de seus planos e de sua cultura corporativa. Com direito até a canal de televisão, com devidas apresentadoras de telejornais fardadas. A rotina de controle também ganha reforço em véspera de conclave comunista. Nos arredores de Pequim, barreiras de vigilância foram montadas há dez dias antes da reunião histórica do PCC, em praças de pedágio e postos policiais nas vias de acesso à capital. "Mesmo sem haver mobilização popular direta, o país inteiro para nos dias do congresso", justifica a funcionária de uma estatal. Fonte: Correio Braziliense de hoje

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