A dama do euro

Amanhã, quando estiver frente a frente com a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, a presidente Dilma Rousseff promete repetir, letra por letra, as críticas que vem desferindo aos países ricos, especialmente aos da Europa. A líder brasileira acusa tais nações de promoverem um "tsunami monetário" contra as economias emergentes, ao despejarem quase US$ 5 trilhões no sistema financeiro global. Antes mesmo de a colega pisar em terras germânicas — Dilma embarcou ontem —, Merkel avisou que está preparada para ouvir as queixas e, claro, apresentar seus argumentos.

Reclamações à parte, a presidente brasileira encontrará uma chanceler vivendo um momento histórico. Sobre os ombros da líder durona e de opiniões conservadoras pesa, cada vez mais, a missão de salvar a moeda única europeia, ameaçada pela crise fiscal que arrasa um grupo de sócios que vai da falida Grécia à França. Com popularidade recorde em seu país, locomotiva do continente e principal fiador do socorro às economias mais fragilizadas, Merkel é hostilizada pelos desempregados da região por defender a austeridade dos governos como única saída do atoleiro em que se meteram. Assim pensa também o povo alemão, que não quer ver o dinheiro dos seus impostos sendo usado para tapar os rombos orçamentários de outras nações.

Pragmática, viciada em trabalho e negociadora hábil — mas pouco carismática —, a tesoureira da Europa sabe que o sucesso do projeto europeu interessa ao futuro da economia alemã. Mas, ao mesmo tempo em que transita em um terreno minado entre seus vizinhos, é obrigada a lidar, diariamente, com as dificuldades de sua base partidária, de olho nas eleições legislativas de 2013, que podem lhe dar um terceiro mandato.

A senhora do euro mantém uma rotina de reuniões de cúpula, nas quais é cada vez mais cobrada a colaborar com a agenda econômica global. E, apesar de ter alertado que "se o euro falhar, a Europa falhará", sustenta que a superação definitiva das atuais turbulências depende, fundamentalmente, da ação dos governos no sentido de buscarem o equilíbrio macroeconômico, limitando o papel das instituições financeiras da União Europeia (UE) e de outros instrumentos recém-construídos para resgates dos que estão à beira da bancarrota.

Fria e racional
Túlio Ferreira, professor de relações internacionais do Ibmec-MG e da UNI-BH, ressalta que as ideias e as ações de Merkel refletem a liderança econômica da Alemanha na Europa, importante para o desfecho da pior crise desde a Segunda Guerra Mundial. "Contudo, com uma abordagem do problema demasiadamente fria, racional e pouca imaginativa para a criação de alternativas, a chanceler prefere tomar decisões passo a passo, sem arroubos", comenta. Mas não dá para ignorar os feitos da professora de física Merkel, uma filha de pastor luterano, nascida há 57 anos em Hamburgo e criada no então lado comunista da Alemanha e que subiu devagar os degraus do poder com desafios inesperados. Divorciada e sem filhos, ela representa trajetória política, no mínimo, especial.

Merkel casou-se ainda no tempo da faculdade e adotou o sobrenome do marido. Ela jamais teria chegado à política sem a queda do Muro de Berlim, em 1989. Naquele momento, aos 35 anos, aderiu à oposição na República Democrática da Alemanha (comunista). Seu posicionamento crítico em relação ao regime só foi conhecido na abertura que levou à reunificação da Alemanha (1990). A partir daí, avançou na carreira, se destacando por sua atuação no governo Khol (1991-1998), como ministra para a Mulher e Juventude e, depois, do Ambiente e Segurança Nuclear, até chegar em 2005 ao cargo máximo, sendo reeleita em 2009.

A luta contra o aquecimento global tornou-se uma marca de seu governo, o primeiro na história alemã conduzido por uma mulher. Merkel, batizada Angela Dorothea Kasner, cresceu no distrito de Uckermark, uma região de lagos e florestas. Essa parte da biografia forjou a inclinação ecológica. Para Estevão Martins, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Alemanha, Merkel "mostrou grande coragem ao encarar as consequências de mudar a matriz energética" para evitar o risco de acidente nuclear como o do Japão em 2011, curvando-se à pressão popular. Segundo o professor, o gigante europeu tem o desafio agora da transição energética sem prejudicar a indústria. A chefe da economia mais saudável da Zona do Euro não precisa se preocupar. Em 2011, a Alemanha cresceu 3%, quando o resto da Europa patinava.

Beijos em público
Mais discreta no primeiro mandato, assumiu o comando da onda conservadora no segundo. No papel de governante austera, opõe-se à entrada da Turquia na UE e defendeu a invasão do Iraque em 2003. Merkel lida com a questão europeia em função dos calendários eleitorais e, com o presidente francês, Nicolas Sarkozy, conduz a gestão da Comissão Europeia. Num primeiro momento, a alemã queixou-se da intimidade demonstrada pelo francês, que insistia em beijá-la no rosto em público. Mas com o agravamento da crise europeia, a proximidade entre os dois foi aguçada, dando origem ao acrônimo "Merkozy". Antes mesmo de explicitar a sua campanha pela reeleição, Sarkozy recebeu o apoio de Merkel, que poderá até participar de seus comícios. A eleição presidencial na França está marcada para 22 de abril.

Um dos capítulos de maior tensão na novela da Eurozona ocorreu na véspera do encontro do G-20, quando então primeiro-ministro grego, George Papandreou, resolveu submeter o pacote de socorro ao seu país a referendo popular. O puxão de orelha da dupla Merkozy levou ao recuo na tentativa do velho político, que renunciaria ao cargo dias depois. Essa postura de Merkel desperta sentimentos antagônicos. O bilionário norte-americano George Soros reconheceu a capacidade de liderança dela, mas alertou que está "levando a Europa para o mau caminho".

Outros gestos foram menos educados, como o comentário grosseiro do ex-premiê italiano Silvio "Bunga Bunga" Berlusconi, no ano passado, e cenas que renderam piadas de adversários, entre ela, a recente derrubada de uma bandeja de tulipas de cerveja nas suas costas, a massagem pública de George W. Bush em seus ombros na reunião do G-8, em 2006, ou quando exibiu um amplo decote no vestido, na inauguração da ópera de Oslo, na Noruega (2008). "Não sabíamos que Angela era tão generosa", foi um dos comentários dos rivais.

Ela não perdeu a compostura em nenhum desses casos. E, melhor, se as eleições na Alemanha fossem hoje, a coalizão de seu governo levaria 38% do votos, garantindo uma vitória, ainda que apertada.


Fonte: Correio Braziliense, 04/03/12, último domingo

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