Juíza de coragem


Publico a seguir a entrevista que a atual corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, me concedeu no fim de 2007 para o jornal baiano A Tarde. Dava para perceber naquela época o que a juíza faria no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Apelidada de justiceira, ela tem é compromisso com o cidadão.

"A morosidade da Justiça ajuda o crime organizado"

Sílvio Ribas

BRASÍLIA – Ela ficou conhecida em todo o País por presidir inquéritos que resultaram no desmonte de quadrilhas que supostamente fraudavam licitações públicas em vários estados brasileiros. E determinou a prisão de empresários, políticos e servidores públicos nas operações batizadas de “Navalha”, “Octopus” e “Jaleco Branco”. A ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Eliana Calmon reconhece que a morosidade da Justiça e as brechas que a legislação possui e que são usadas pelos advogados dos acusados ajudam as ações do crime organizado no Brasil. Citada pelos seus pares como uma juíza “durona”, a ministra baiana diz que tem se esforçado para dar agilidade aos inquéritos que conduz justamente como forma de evitar os adiamentos que, às vezes, são apenas para se tentar conseguir a prescrição dos crimes pela extrapolação dos prazos.

Em entrevista exclusiva à Agência A TARDE, Eliana Calmon falou pela primeira vez sobre o inquérito resultante da Operação Navalha (esquema de fraude em licitações liderado pela construtora baiana Gautama) e disse que aquele caso revelou uma situação emblemática no Brasil. “Nunca se viu tanta gente, tanta empresa envolvida e tantas autoridades envolvidas”, declarou a ministra, que é responsável pelo andamento de mais dois inquéritos grandes a respeito de fraudes envolvendo o serviço público e que receberam os nomes-fantasia de Octopus e Jaleco Branco, ambos vinculados por alguns personagens e pelo método à Operação Navalha.

Cidadania
A magistrada defende que a Justiça precisa usar o direito penal em favor da cidadania, evitando ações protelatórias dos advogados, que tentam ganhar tempo e levar os processos à prescrição e lembra: “O crime organizado hoje tem atuado com bastante ênfase e desenvoltura no poder público, misturando-se aos órgãos”.

A ministra rebate críticas de alguns advogados de que seria “precipitada em mandar prender e confiscar bens de acusados” e observa que ante o crescimento do crime organizado, “não é não possível ignorar essa realidade nem favorecer criminosos com regalias de um pretenso Estado Democrático de Direito”.

E prossegue: “Nele, o cidadão fica de fora e certos aproveitadores da lei conseguem evitar ou minimizar a punição. É claro que não quero o abandono de garantidas democráticas, nem ver ações de um estado policialesco. Por isso não se pode dar prisão sem as diretrizes exigidas pelo Código Penal dos anos 1940”.

A ministra lembrou que foi, por 20 anos, juíza de primeiro e segundo graus e que, por isso, sabe bem onde estão os gargalos dos processos. “Sempre priorizo os processos penais, para que não caiam na prescrição. No geral, juízes de primeiro grau são muito rápidos, ao contrário dos juízes de tribunais onde há grande número de processos por serem julgados”. Apesar de toda a agilidade que procura imprimir aos processos, no último dia 17 completou-se um ano da deflagração da Operação Navalha, sem que nenhum dos acusados tenha sido punido pela Justiça.

Ramificações
A Operação Octopus começou a ser desenvolvida em 2006 pela Polícia Federal, a partir de um pedido formulado pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que estranhou a facilidade com que um grupo de empresas inadimplentes com sede em Salvador conseguia autorização para participar de concorrências públicas.

Em meio à investigação, os agentes federais se depararam com uma poderosa ramificação, que passou a merecer uma operação específica, denominada Navalha, envolvendo as ações da Construtora Gautama e do seu dono, Zuleido Veras. A Jaleco Branco, por sua vez, é uma ramificação da Operação Navalha.

Eliana Calmon considera que o andamento do caso segue seu curso normal em razão da complexidade e amplitude do inquérito e lembra que o STJ acolheu, no fim do mês passado, a denúncia do Ministério Público, com uma lista de 61 denunciados. “As conexões no esquema envolvendo desvio de dinheiro repassado por órgãos públicos eram de tal forma diversificadas que incluíam até a própria Polícia Federal. “As investigações mostraram que, certamente, há ainda muito mais nomes e empresas envolvidas nos casos do que os listados até agora”, justifica a ministra.

Vazamentos
Ela ressaltou que a Polícia Federal teve muitas dificuldades para chegar aos envolvidos e confessou que, no andamento do inquérito enfrentou problemas de vazamento de informações sigilosas. “Para se ter idéia”, exemplificou a ministra, “uma decisão sigilosa minha foi parar no Google (principal site de pesquisas da Internet). A investigação foi dividida entre fraudes com obras e fraudes com serviços prestados, listando fornecedores de mão-de-obra para órgãos federais, no caso a Universidade Federal da Bahia (Ufba). Para barrar novo vazamento, então conseguimos puxar o inquérito para Brasília, na Operação Jaleco Branco”.

Apesar de destacar seu empenho contra as ações protelatórias dos advogados e do desejo de ver os grandes criminosos punidos, ela não aceita ser considerada uma “justiceira” e diz que o seu propósito no STJ, “até correndo riscos, é cumprir com minhas obrigações”.

E revela que, por mais de uma vez, tentaram lhe tirar esses inquéritos (Octopus, Navalha e Jaleco Branco), pelo fato de ter nascido na Bahia, de onde também são os líderes dos esquemas fraudulentos, mas garante que não permitirá que isto aconteça: “Não vejo nenhuma incompatibilidade em ser relatora deles. Sou baiana, mas estou fora da Bahia há quase 20 anos. Não conheço nenhuma dessas pessoas acusadas de praticar ilícitos graves, o que considero favorável ao meu trabalho como magistrada”.


BRADOS RETUMBANTES

Da coluna da Miriam Leitão (O Globo) de 04/02/12: "Quando a ministra Eliana Calmon fez sua forte declaração sobre bandidos de toga, isso ofendeu muita gente do seu próprio poder, mas ajudou a tocar numa ferida que precisava ser exposta à luz. A toga não pode ser esconderijo para maus feitos; é manto que protege o exercício da magistratura e não os desvios pessoais dos indivíduos que exercem o poder. Sem essa distinção, o Brasil ficaria mais perto de uma sociedade de castas. E isso é estranho à democracia".

Do blog de Ricaro Setti (Veja) de 31/01/12: "Vejam a franqueza e a coragem da ministra Eliana Calmon. Não se me lembro de ter lido declarações de um magistrado sobre as mazelas e problemas do Judiciário tão sinceras e diretas (...) Ela diz que o Judiciário está contaminado pela politicagem miúda, o que faz com que juízes produzam decisões sob medida para atender aos interesses dos políticos, que, por sua vez, são os patrocinadores das indicações dos ministros.

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