A flor do pequi

Foto: Márcio Cabral
NB (nota do blog): Os textos de Conceição são sempre saborosos e instrutivos. Mas a coluna dela de domingo passado, que reproduzo abaixo, me tocou ainda mais fundo, por tratar de coisas e temas com os quais tenho a intimidade de sertanejo, criado com pequi e outros símbolos do cerrado. Carne na lata, por exemplo, me fez viajar 30 anos no passado, rumo às minhas origens curvelanas. Dizer que o pequi tem cor amarela mas cheiro vermelho é merecedor de nossos aplausos. Vale a pena reler de novo.

A comida nativa

Por Conceição Freitas
(Coluna Crônica da Cidade/Correio Braziliense)


Antes de o Brasil dos quatros cantos aqui desembarcar, o Goiás que aqui existia cultivava uma gastronomia herdada de bandeirantes e escravos. No fogão a lenha de muito antigamente, havia feijão, toucinho, arroz, derivados do milho (angu, canjica) e, vez ou outra, algum tipo de carne de galinha, de porco, de boi, e de caça — tatu, catitu, anta, cutia, tamanduá, jabuti, onça, paca. Carnes, porém, só em dias de festa. De sobremesa, doce de frutas do cerrado, doce de leite, doce de mamão ralado, doce pastoso de goiaba, doce de mamão enroladinho.

Os primeiros candangos encontraram no Distrito Federal uma selva farta em carne de caça. Durante certo tempo, os recém-chegados divertiam-se nas poucas horas vagas caçando bichos do cerrado. (Os cientistas da Missão Cruls alimentavam-se muitas vezes de carne de caça que eles próprios caçavam, como o engenheiro-militar Hastimphilo de Moura registrou em suas cadernetas de anotações).

Os candangos caçaram e comeram, mas trouxeram sua própria culinária. Em pouco tempo, a Cidade Livre era um mercado aberto de comidas nordestinas. A culinária goiana que habitava o quadradinho antes de ele existir ficou reduzida às sedes das antigas fazendas e às antigas cidades do Entorno (Planaltina, Luziânia, Formosa).

A refeição mais importante do dia era o jantar — a janta — que celebrava o final da dura peleja na roça. Nos finais de semana, o almoço tomava o lugar de honra. O goiano, como o mineiro, desenvolveu a técnica da carne de lata — carne de porco cozida e conservada em banha. Quando chegava o tempo do milho e do pequi, o goiano comia pamonha no café, no almoço e na janta. Pequi no arroz, no frango, no frango com arroz, roído com cautela, mas com muito gosto.

Prato principal da cozinha goiana, a galinhada com pequi tem a mesma origem caipira das galinhadas de Minas Gerais. O goiano acrescentou a ela o pequi e com ele um sabor único, indisfarçável, incomparável, um cheiro de natureza fortemente perfumada — não um aroma enjoativo, mas um perfume de forte personalidade. O pequi é amarelo, mas o cheiro é vermelho. É uma fruta, mas se comporta como um bicho arredio: espeta quem dele não sabe se aproximar, mas é sedoso como um bom sorvete.

Brasília não gosta muito de sua origem goiana, o que a impede de acompanhar a floração dos pequizeiros que ainda existem no cerrado que nos rodeia. Nem é preciso sair da cidade. Há um pequizeiro em qualquer pequena extensão de área nativa. Agosto é o mês em que o pé de pequi está em floração. E a flor de pequi é o avesso do fruto que ela contém. É tão delicada que parece quase não existir. Ninguém diria que dela brota a fruta que tem o gosto da bravura do cerrado.

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