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Mostrando postagens de novembro, 2024

Se o pinguim da geladeira falasse

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Sílvio Ribas Lá estava ele, imponente, sobre a geladeira branca Electrolux de Arminda. O pequeno pinguim de porcelana parecia vivo, observando e ouvindo tudo. De seu trono gelado na cozinha, ele era espectador privilegiado do povo que circulava na velha pensão no centro de Curvelo (MG), uma casa repleta de histórias e afetos. Na sala de TV, o tique-taque do velho relógio de parede parecia dar ritmo aos dias, como um coração marcando o tempo. Do canto da cozinha, o pinguim também ouvia as conversas arrastadas de minhas tias-avós, cheias de lembranças de antigamente, que mais pareciam contos tirados de livros consagrados.  Aquele pássaro elegante que não sabia voar, tachado de símbolo brega, queria mesmo era acompanhar o terço das hóspedes, rezado nos quartos. Essas vozes devotadas ainda ecoam na minha memória como cânticos. Mas, por cima, o simpático artigo de decoração sondava o vaivém no generoso lar de Arminda. Na cozinha, o pinguim era testemunha das delícias que se aqueciam no ...

Mesma praça, novo jardim

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CURVELO, A GRANDE VEREDA DO CERRADO Proposta de intervenções urbanas para transformar a cidade para sempre Ao implementar as sugestões a seguir, inspiradas em outras cidades e adaptadas à realidade local, Curvelo poderá se tornar referência em planejamento urbano sustentável, promovendo o convívio, a cultura, o lazer e o bem-estar para todos os habitantes. Além disso, a transformação do centro da cidade em uma "Grande Vereda do Cerrado" será um convite para que todos explorem e apreciem as belezas naturais e culturais da região. O resultado disso tudo pode consagrar o município como a capital do Circuito Turístico Guimarães Rosa. 1. Conversão de ruas em calçadões Inspirado no modelo de Boston, EUA, onde áreas como a Freedom Trail são exclusivas para pedestres, em Curvelo, podemos selecionar algumas ruas-chave no centro da cidade para serem transformadas em calçadões de tijolos vermelhos. Ruas como a Zuzu Angel podem se tornar espaços ideais para o convívio de pedestres, com á...

Tonho e sua dona

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Sílvio Ribas  Adotei para mim mesmo uma expressão tipicamente caipira, lá do meu sertão em Curvelo (MG), aquela na qual homens chamam suas esposas de “minha dona”. Sei que o significado dela para eles simplesmente equivale ao de “minha mulher”, sem suscitar qualquer conotação de posse. Mas também entendo que esse modo de tratamento revela o sincero respeito pelas “rainhas do lar” ou “patroas”, como se diz no campo e na cidade. “Minha dona” me evoca ainda a palavra italiana que significa mulher. Mas o que mais me traz à memória nessa expressão é uma figura folclórica de meu passado, o seu Antônio, pequeno proprietário rural vizinho do sítio de meu pai, Maurílio, mais conhecido como Tonho da Dedeca. O sobrenome do apelido dele vinha do nome da esposa, a dona Dedeca, com quem fazia um casal boníssimo e de inspiradora simplicidade.  Matreiro como todo mineiro dos Gerais, toda vez que alguém lhe propunha um negócio — fosse um cavalo manco, uma vaca prenha ou um leitão gordo demais ...

A sonata perdida

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Sílvio Ribas Lilibeth – para alguns, Bete; para outros, Lili – deixou o Conservatório de Música da UFMG envolta em uma brisa suave que parecia orquestrada pela própria tarde. O sol, meio tímido e fugidio, tingia a Afonso Penna, principal a Avenida de Belo Horizonte, de tons dourados, como se quisesse eternizar aquele instante.  Lili subiu sozinha na lotação azul da capital mineira ainda absorta nas escalas e melodias que ensaiara durante horas. Seus pensamentos flutuavam, escapando da mente como partituras soltas ao vento. Quando o ônibus cruzou a Getúlio Vargas, algo impalpável, como um acorde inesperado, prendeu-lhe a atenção.  Entre os sons das buzinas, o murmúrio de conversas dispersas e o chiado das portas, ouviu, nítido e etéreo, um solfejo. Como se alguém, escondido entre a plateia distraída de trabalhadores cansados, donas de casa carregando sacolas e estudantes uniformizados, estivesse sussurrando uma melodia que só Lilibeth poderia identificar. Era um trecho da Sonat...

Minhas velharias

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Sílvio Ribas Confesso que ainda me surpreendo quando alguém me trata por “senhor”. É verdade que sinto um certo orgulho e gratidão pelo respeito, pela polidez, pela consideração envolta na palavra. Mas, ao mesmo tempo, percebo que existe um jovem dentro de mim que reluta em ser visto como alguém “mais velho”, ainda que eu não tenha exatamente atingido o status de “idoso”.  Ocorre que pertenço a uma geração de transição entre séculos e milênios, que testemunhou uma mudança intensa e rápida na forma de se relacionar com o mundo, de viver e de compreender o cotidiano.  Somos aqueles que escreveram cartas à mão, que datilografaram em máquinas, que ouviram o som das fichas caindo nos orelhões. E hoje, nos vemos em meio ao universo digital, lidando com a velocidade dos bits, das mensagens instantâneas, das buscas na internet e, mais recentemente, com a inteligência artificial.  Adaptamo-nos, e aprendemos a manejar essa rapidez tecnológica, mantendo ainda uma certa sabedori...