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Mostrando postagens de setembro, 2024

Pegadas na areia

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  Sílvio Ribas Quando menino em Curvelo (MG), lá nos anos 1970, numa época em que rádio e conversas na rua eram mensageiros ágeis das novidades, o mundo era outro. Bem diferente.  Sem celulares e conexão online, os textos curtos e populares não chegavam em telinhas cintilantes, mas por meio de cópias mimeografadas, recortes de jornal e anotações caprichadas em cadernos. Eles eram difundidos também em voz alta nas reuniões de família, em eventos sociais e nas missas. Um desses breves escritos que jamais deixou de ressoar na minha cabeça foi o poema “Pegadas na Areia”, de autor desconhecido. Em marcador de livros, santinhos distribuídos na paróquia e quadros de aviso, a história conta o sonho de alguém conversando com Jesus no Céu sobre a sua trajetória na vida terrena, ilustrada por uma caminhada dos dois por uma praia. Aquelas linhas cativaram muita gente.   O desfecho inusitado da narrativa, consagrando a misericórdia divina com uma belíssima metáfora, me pareceu sintetizar a fé c

O ladrão atrás da porta

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Só faltou chamar a SWAT. Naquela tarde quente de sábado, no verão de 1981, a tensão tomou conta da minha casa em Curvelo MG). Pré-adolescente, eu, minha família e amigos vizinhos acreditávamos convictamente que havia um ladrão escondido no banheiro. Um grupo de homens se postou estrategicamente para bloquear a passagem entre o local do suposto foragido e os quartos. Outros ficaram no lado de fora, sob o elevado basculante do banheiro, tentando ver e ouvir movimentações e assistir a tentativa de fuga, captura ou rendição do meliante. Linchamento estava fora da lista. As negociações, contudo, pareciam não avançar. Tião, um amigo forte e corajoso que morava na rua de trás da nossa Sete de Setembro chegou com um ameaçador pedaço de pau – mais especificamente, uma trave de madeira grossa. Ele estava decidido a encarar e deter o ladrão, assim que desse as caras. O clima ficava ainda mais tenso. Estaríamos perto de um psicopata? O incidente começou de maneira bem singela. Ao tentar abri

O alforge do Jorge

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  Lá para os lados de Gouveia, perto de Curvelo e no rumo de Diamantina, vivia Jorge. Nos distantes anos 1930, o então rapaz de mãos calejadas e coração puro se encantou por Ana Maria. Filha de fazendeiros prósperos, a moça tinha beleza e graça que não passavam despercebidas. O tímido Jorge tomou coragem e começou a cortejá-la com o aval dos pais dela, que viam nele um jovem trabalhador e de bons princípios. Todos os domingos, Jorge vestia sua melhor roupa, montava o cavalo e cruzava as colinas para visitar Aninha depois da missa. O namoro corria bem, com conversas no alpendre e sorrisos trocados à sombra das árvores. A família toda dela gostava do namorado e sempre o recebiam com carinho e hospitalidade. Certa vez, ele foi tomado por uma forte cólica abdominal logo após chegar à fazenda. Com muita educação, pediu licença para sair até a varanda, mas, ao se ver sem penico ou outro recurso, se apressou para improvisar por ali mesmo. Envergonhado, Jorge aliviou-se em um dos alforjes

Peregrinos sem rumo

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  Na época dos antigos, como o meu pai Maurílio gosta de dizer, era comum andarilhos à beira das estradas que ligavam nossa Curvelo (MG) a outras paragens. Eles caminhavam sem pressa e sem destino certo, como folhas levadas pelo vento, compondo paisagens urbanas e rurais. A maioria deles era homens velhos, solitários e desmemoriados, que passavam de cidade em cidade, sustentando-se apenas com o que lhes davam pelo caminho e dormindo em abrigos improvisados — uma varanda oferecida por um fazendeiro, o canto de uma venda ou mesmo sob a abóbada celeste. Um desses peregrinos sem rumo, que cruzavam longas distâncias sem propósito aparente, era o seu Augusto. Pai da minha querida Arminda Marques, que foi como uma segunda mãe para mim, a sua história cruza com a da minha família materna. Arminda era irmã de criação de minha mãe, Meire, e foi ela quem acolheu o seu Augusto quando ele, depois de tanto vagar, resolveu tentar fincar raízes, ainda que provisórias, em um barracão nos fundos da no