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Mostrando postagens de agosto, 2024

Churchill no sertão mineiro

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  Sílvio Ribas No fim da Segunda Guerra Mundial, Curvelo estava em festa. Quando muitos soldados brasileiros voltavam para casa, algumas famílias dessa pequena cidade do sertão mineiro aguardavam ansiosamente os seus. Entre os conterrâneos empolgados estava a Dona Luzia, uma viúva de idade avançada. Ela ansiava com o coração cheio de saudade o retorno do filho mais velho, Geraldo Magela, que havia lutado bravamente na Itália. Famosa por sua simpatia e teimosia, Luzia chegou à estação ferroviária cedo, bem antes da hora do almoço, determinada a garantir um bom lugar para ver o seu primogênito desembarcar no horário previsto, começo da tarde. Com a filha mais nova, Clarinha, ao lado, ela se acomodou em um banco de madeira, de onde podia observar de perto os trilhos que davam em Belo Horizonte. Enquanto a velha mãe contava os minutos faltantes da sua longa espera, algo inusitado ocorria lá no trem que trazia Geraldo. Em um dos primeiros vagões, um senhor idoso e obeso, conhecido pel

A Serra do Rola-Véia

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Sílvio Ribas No início do século 20, a tropa de burros seguia seu trajeto regular de centenas de rudes quilômetros entre as cidades de Itabira e Diamantina, transportando os produtos da vida quotidiana nas Minas Gerais: rapaduras, farinhas, rolos de fumo, toucinho, querosene de lamparina, entre outros. Mas, naquela rota havia uma carga especial: a mais velha freira do centenário Convento de Macaúbas, em Santa Luzia. A religiosa, muito adoentada, desejava rever a sua família em Curvelo antes de partir deste mundo. Como não conseguia se sentar adequadamente na cela de mulheres, o astuto e experiente mestre dos tropeiros decidiu improvisar. Ele a colocou em um dos balaios da Princesa – a bonitona mula guia do grupo de asnos, conhecida por sua resistência e segurança nos terrenos acidentados. A comitiva avançava devagar, como era costumeiro nos longos caminhos que cruzavam as montanhas e os vales, entrando pelo sertão afora. Em um trecho estreito e sinuoso da travessia bem conhecida da t

Cacos de memória

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De onde venho, uma cidade quente e empoeirada no coração de Minas Gerais, o orgulho é um sentimento que atravessa gerações. O povo de lá é destemido e cheio de fé. Nós, filhos do Curvelo, temos um apreço especial pelas lembranças que evocam saudade e uma certa vaidade em pertencer a essa terra. Foi o saudoso jornalista Raimundo Martins, conhecido como Diquinho, criador da lendária revista e depois jornal CN, quem me ensinou a usar a expressão: “Perdão pela falta de modéstia, mas sou de Curvelo.” Já se passaram quase 40 anos desde que deixei minha terra natal para desbravar o mundo, mas frequentemente me vejo revisitando, nos campos da memória, os tempos saborosos de infância e adolescência. Como um arqueólogo de mim mesmo, encontro vestígios de lugares, costumes e pessoas, tentando reconstruir a totalidade dessas lembranças com a ajuda de conterrâneos que viveram as mesmas experiências. Gostaria de compartilhar aqui alguns desses fragmentos de memória, esperando que os curvelanos q

Epopeia iniciada no lombo do carneiro

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Quando eu contava para os amigos que meu avô paterno, Walmiro de Sousa (1913-1985), construiu um império rural no bravio sertão mineiro do século passado a partir do nada, percebia o interesse e a admiração nos olhares deles. Porém, a surpresa era inevitável ao ouvir na sequência que esse empreendedor nato começou seu capital ainda menino, vendendo ovos pelas roças montado em um... carneiro. A reação inicial variava entre o cômico e o curioso, mas, ao refletirem sobre a história, todos concordavam que ela tinha a vocação de um enredo digno de Hollywood. Na fase adulta, sua imagem lembra até a do maior cowboy do cinema, o ator americano John Wayne.  Minha avó paterna, Maria da Conceição Moreira de Sousa (1913-1988), mais conhecida como Dona Sinhá, teve o cuidado de escrever uma biografia abreviada dele logo após sua morte. Temendo que a história de vida de 75 anos de seu amado se perdesse com o tempo, a viúva idosa me entregou seu caderno com a missão de transcrever e editar o relato

"Aquela bunda me salvou"

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Sílvio Ribas Quem me trouxe esse saboroso e desconhecido episódio da fantástica biografia do antropólogo, etimólogo, educador, escritor e político Darcy Ribeiro (1922-1997) foi o meu amigo Walter Fróes, empresário natural de Patos de Minas. Ele contou o que Darcy, mineiro de Montes Claros, revelou ao Walter Fróes pai, colega de escola na infância e amigo de toda a vida, sobre como sobreviveu pela primeira vez, 23 anos antes de seu encontro fatal com os males causados pelo cigarro. Fumante inveterado desde a adolescência, o genial ex-senador e ex-ministro da Educação estava passando férias em Portugal, em dezembro de 1974, quando descobriu que sofria de câncer pulmonar. Na época, Darcy vivia no exílio em países da América Latina desde 1968 e teve o seu retorno ao país autorizado pelo regime militar. “Imaginavam que eu voltaria para morrer”, disse ele em entrevistas. Tratou-se no Brasil e ficou totalmente curado após ter um dos pulmões extraído. Apesar do sucesso do tratamento, Darcy