Cantar e os males espantar


Em 1968, pouco após os assassinatos do pastor Martin Luther King e do presidenciável Bob Kennedy, Elvis Aaron Presley (1935-1977), surpreendeu o mundo ao gravar belíssima canção em honra dos dois célebres pacifistas americanos. É emocionante assistir o vídeo de If I can dream, com o Rei do Rock cantando hino gospel com evidente conteúdo político, clamando pelo fim das tensões raciais na América à época.

A súplica de Elvis pela concórdia humana, que foi encenada na recente cinebiografia do cantor, é, infelizmente, atualíssima. Passado mais de meio século, assistimos a atos de guerra criminosos, covardias com inocentes e ofensas racistas em espaços públicos. Atrocidades assim não só cobram a condenação de culpados. Elas gritam por inspiradas mensagens de paz e liberdade proferidas pelos artistas.

Imagine, música antológica de John Lennon (1940-1980) lançada em 1971, nunca deixará, por exemplo, de ser o mais amplo manifesto pela tolerância contra a insanidade belicista. É outra prova de que celebridades engajadas podem despertar o bem maior em todos escondido pelo extremismo de culturas identitárias. “Quem canta os males espanta” é um ditado receitado para aflições individuais, mas que pode alcançar o clamor universal.

O grande Mal a ser espantado requer a sensibilidade de compositores de melodias desconcertantemente lúcidas. Foi assim que ataques americanos ao Vietnã foram desmoralizados pelo(a) soul de What’s Going On (1971), de Marvin Gaye, e que We are the World (1985), hit liderado por Michael Jackson e entoado pela constelação de mais 44 ídolos, chacoalhou a indiferença do concerto das nações diante da fome na África.

A crescente irritação do público com míseros contratempos, a escalada de rusgas ideológicas e a violência cometida por torcidas de futebol sugerem que as boas vibrações de gênios pop poderiam ajudar a desanuviar o horizonte. É preciso, portanto, voltarmos a tocar os corações e as mentes de todo o planeta com bem-intencionados instrumentos musicais e vozes, tal qual se fazia muito bem até os inesquecíveis anos 1980.

Se vivo estivesse, Lennon estaria causando nas redes junto com Yoko, Bono e outros, exigindo cessar-fogo, desnuclearização de arsenais e a viralização da solidariedade. Então o sonho acabou? Não. Gestos infames de incivilidade escandalizam e urros de dor ainda são ouvidos por astros. Só falta à palavra cantada por gente talentosa perder cor partidária, para que chegue a todas as consciências indistintamente e... os males espantar.

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