O sultão e o "sarrafi"


“Descer o sarrafo” é um jeito bem-humorado de se referir a opiniões duras de comunicadores. Contudo, após visitar Omã e lá ser apresentado a todos como o “sarrafi” (jornalista em árabe) do Brasil, a expressão passou a me evocar também simpatia. Isso porque os receios de desembarcar numa região marcada por conflitos bélicos e religiosos sumiram logo que provei a hospitalidade dos súditos do sultão Qaboos bin Said al-Said (1940-2020).

Como enviado especial do Correio Braziliense, a convite do governo omani, cheguei à capital Mascate em abril de 2014 para confirmar um momento especial do pequeno país no extremo sul da Península Arábica. As suas iniciativas para modernizar e diversificar a atividade econômica – até hoje concentrada em petróleo, gás e tâmaras – e ampliar presença no comércio global atraíam projetos de multinacionais como Vale, Petrobras e BRF.

As experiências que tive em um dos últimos sultanatos do mundo, muito distante culturalmente do Ocidente, foram inesquecíveis. Entrevistei em inglês por uma semana ministros, executivos, gestores, parlamentares e técnicos. E conheci as tradições daquele povo simples na voz de servidores públicos e feirantes. A tevê já tinha revelado curiosidades dos omanis em belas reportagens de Glória Maria (Globo, 2012) e Sérgio Utch (SBT, 2013).

Mascate – designação de vendedor ambulante para os brasileiros – parecia ter o nome certo para uma cidade portuária de 600 mil habitantes onde se pratica o milenar talento comercial das Arábias. Em todas as reuniões lá se serve o tradicional café com tâmaras e no centenário souq (mercadinho) se compra túnicas, tapetes e incenso dos tempos bíblicos. Foi interessante ver vistoso shopping decorado com publicidade ilustrada por famílias típicas.

A capital com longo calçadão à beira mar e severa cordilheira ao fundo é o refúgio de um deserto que exibe temperaturas de até 50 graus centígrados. Em diferentes pontos de Omã despontavam obras de infraestrutura e joias arquitetônicas das mil e um noites, tudo voltado a negócios e turismo. Neles se incluíam pesca, esportes náuticos escoltados por golfinhos e até circuitos ciclísticos. A rodovia para o norte tem centena de quilômetros arborizados.

Na gigantesca mesquita ganhei O Corão em português e na tevê assisti programas com intermináveis cânticos, novelas brasileiras com cortes nas cenas mais “quentes” e disputados desfiles de camelos. Foi surpreendente circular pelo Porto de Sohar, emergente polo industrial do país, numa perua dirigida por jovem coberta de preto. Revi estereótipos após ouvir da velha curadora de centro cultural: “Não tocamos mãos. Tocamos corações”.

O mais interessante ali foi encontrar, em meio a tanta aridez e conturbação, uma nação de 3 milhões de pessoas gentis, que faziam do país o oásis da tolerância. O sultão, que estava no poder desde 1970, quando derrubou o próprio pai, não tinha filhos nem indicou sucessor. Ele se projetou ao longo de décadas de absoluto reinado como hábil negociador, mediando diálogo entre Irã e Estados Unidos, por exemplo, e sendo respeitado pelos vizinhos.

Sua Majestade foi a única fonte que não pude entrevistar, embora tenha ido até às portas do seu palácio. Contudo, lamento mesmo não me lembrar dos nomes da dupla de funcionários do governo que se revezaram como guia, motorista e intérprete das minhas andanças por lá. Eles contavam piadas sobre a sua rotina e os seus costumes tribais e me mostravam sem receio os hábitos islâmicos. Chucran (Obrigado), meus bons amigos.

PS: publicado hoje pela newsletter Jornalistas&Companhia

Comentários