Não deixe a política morrer

Sílvio Ribas

A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e a procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, uniram-se à cantora Alcione para interpretar o clássico “Não deixe o samba morrer”. O inusitado momento, ocorrido no último dia 20 de agosto, durante um seminário em Brasília, viralizou nas redes sociais. Aquele refrão me inspirou, contudo, a fazer uma paródia com apelo mais cotidiano que o sugerido pela canção.

Não deixe a política morrer, não deixa a política acabar. Nossa democracia foi feita de política, da política para nos libertar. Brado isso com a plena consciência de que os políticos do país jamais foram tão repelidos como agora. Mas sinto-me igualmente impelido a alertar para o risco de a aversão geral aos detentores de mandato popular ceifar a nobre atividade política.

“A democracia é a pior forma de governo existente, exceto todas as outras”, ensina a frase eternizada por Winston Churchill em 1947. Os dois últimos séculos consagraram o princípio democrático como base insubstituível para a construção de instituições perenes para promover justiça e paz social. Isso apesar das dificuldades que desafiam o exercício na prática da tese de que o poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido.

A busca por novos modelos para substituir a democracia representativa, que enfrenta desde o fim do século 20 crescente crise de identidade, não pode, absolutamente, descambar para a negativa de elementos intrínsecos à majestade democrática, como plena garantia à manifestação de opiniões, respeito dos direitos das minorias, tolerância religiosa e imprensa livre. Independentemente de quem seja eleito, a boa política deve prevalecer.

Políticos são indivíduos falhos, mortais e susceptíveis aos rigores da lei. As instituições, todavia, devem se manter incorruptíveis ao longo dos tempos graças à força desses princípios consagrados. Por isso causa-me pavor as manifestações de ódio contra a classe política alcançando o Legislativo por inteiro. Não dá para rir de piadas que pedem morte de todos parlamentares por chamas atiçadas ao Congresso. Foi isso que levou à Alemanha nazista.

A política pode ser vista como ciência, como filosofia e até mesmo como arte. Mas nunca pode tachada de algo menor ou como o campo fértil reservado invariavelmente para o crime de poucos contra toda a Nação. Cabe ao povo se apropriar da política e coloca-la no lugar que lhe é devido, travando uma salutar luta de interesses em favor do interesse maior de equilíbrio e de liberdade. Pensar de forma adversa a isso é colocar a perder tudo o que realmente interessa à maioria, sobretudo aos já desfavorecidos.

“Quando na vida de um povo não se pode preservar a limpidez das fontes do poder, algo de grave está para ocorrer, pondo em risco as suas tradições morais e a sua própria respeitabilidade”, discursou Tancredo Neves há quase 40 anos na tribuna da Câmara. O falecido senador mineiro, primeiro presidente civil eleito após a ditadura de 1964, protestava contra a reação do regime militar para estancar o crescente avanço da oposição nas urnas.

É verdade que, hoje em dia, a democracia representativa tem sido mal utilizada pelos políticos. A contestação que cresce em todo o mundo às práticas ultrapassadas e espúrias é válida, mas sofre percalços no desejo de implantar saídas mais afinadas com a participação popular. A pouca ou nenhuma representatividade política dos partidos e seus representantes reflete também a falta de sintonia com os modernos arranjos sociais.

Temos, pois, de reaver origens da prática democrática, com participação popular nas decisões, seja por canais sofisticados seja por sólidas instituições. As propostas de iniciativa popular são uma prova disso e a atuação da Justiça contra os desmandos de maus políticos, também.

As agruras que a democracia brasileira sofreu ao longo dos 30 anos de vigência da atual Constituição não foram capazes de destronar a consciência cívica sobre a importância de não dar passos atrás. Temos é de avançar. Por isso, insisto: não deixe a política morrer.

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