Postagens

Mostrando postagens de 2025

Orgulho geodésico

Imagem
  Sílvio Ribas   O mapa do tesouro da mineiridade marca um X no solo de Curvelo (MG). Por décadas, os filhos e amigos da cidade souberam para onde apontar quando falavam do “centro geodésico” do estado. Ao lado direito da entrada da Igreja da Imaculada Conceição, no bairro Tibira, havia um bloco de concreto que indicava um especial ponto de Minas Gerais estudado por geógrafos, agrimensores e cartógrafos. Aquele dado técnico era também patrimônio dos curvelanos, cultivado com fervor. A marca simples, que poucos olhos de fora notavam, estava bem guardada na memória daquela gente e a enchia de orgulho. O ponto de convergência do grande território mineiro virou reportagem na TV e publicidade da Prefeitura e do comércio local. Poética e oficialmente, o município adotou a alcunha de coração do estado. O tempo passou e o marco provisório deu lugar a um monumento mais elaborado, de traço moderno, dividido com o jardim lateral da igreja. Com arco e setas, o símbolo novo visav...

A vida não cabe num prompt

Imagem
Sílvio Ribas A última cena de Inteligência Artificial (Artificial Intelligence: AI,  2001), dirigido pelo genial Steven Spielberg, é uma daquelas que ficam conosco — não só pela beleza, mas pelo comichão existencial que produz. O mundo humano se extinguiu há milênios. Tudo o que restou foi um menino-robô, testemunha solitária da fragilidade e da grandeza do que fomos. À sua frente, uma forma avançada e alienígena de inteligência tenta compreender a espécie que desapareceu. Coube à IA  exalar aquilo que foi humanidade. Essa imagem ficcional nos remete à realidade do presente. Desde 2024, assistimos à expansão acelerada da IA no cotidiano com espantosa naturalidade. Abrimos as portas de nossas casas, corações e mentes às máquinas que aprendem, simulam e respondem com rapidez inquietante e cada vez mais precisão. Passamos a conviver com textos, imagens e vozes que não vêm de seres vivos, mas de comandos — prompts, como se convencionou chamar. E quando o mundo começa a ser de...

A velha estação e seus presidentes

Imagem
Sílvio Ribas Em só duas ocasiões, ambas devotadas aos trilhos, Curvelo recepcionou a maior autoridade do país. Separados por quase um século, os presidentes Rodrigues Alves e Fernando Henrique Cardoso (FHC) honraram a cidade mineira com as suas presenças. O primeiro veio para pré-inaugurar a velha estação ferroviária, em 1904, e o outro, para aposentá-la de vez, em 1997. Foram nos 93 anos que separam as breves visitas presidenciais que aquele município sertanejo encenou o vai-e-vem de pessoas, mercadorias e sonhos pela via férrea. Embarcados na mesma locomotiva histórica, os chefes do Executivo prometeram ao povo dias melhores para o Brasil. Depois deles, a retirada dos trilhos da zona urbana moldou paisagens e negócios. Em 3 de julho de 1997, FHC desfilou de trem por oito quilômetros para inaugurar o novo trecho da linha e a nova estação. Moradores emocionados lançaram flores sobre a composição. Em discurso, o presidente recordou que a remoção da linha do centro da cidade era an...

O vovozinho e o lobo bom

Imagem
Sílvio Ribas A clássica fábula de Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault, ganhou versão inusitada na minha vida — com personagens trocados, um cenário sertanejo e, felizmente, um desfecho tão encantador quanto.  Em vez de uma menina de capuz vermelho e uma floresta sombria, havia o meu avô materno, Ely Ribas, lá na minha terra natal, Curvelo (MG), daqueles anos 1980. Ele morava na rua detrás da minha, numa aconchegante casa. Naquela pequena cidade no coração do sertão mineiro, um conto mágico ocorreu. O lobo dessa prosa era um belíssimo lobo-guará que surgiu no alpendre do doce vovozinho. Ele não era mau. Só estava assustado e ferido. O animal, esguio e imponente, tinha mais medo dos humanos do que o inverso. Vinha fugido de queimadas que se alastravam pelo cerrado, expulso para o meio urbano por um mundo cada vez mais hostil ao seu.  Não fez qualquer mal ao velho fazendeiro que o encontrou. Seu Ely, com a serenidade de quem já viu muito, só chamou a polícia florestal. Os a...

"O fim do mundo está acabando"

Imagem
 Sílvio Ribas Durante boa parte da minha vida, ouvi a constante promessa de que o mundo acabaria em breve. Não por guerras ou catástrofes ambientais, mas por profecias, boatos e teorias que vinham com suspense hollywoodiano. Os iminentes apocalipses davam sustos, mas, graças a Deus, nunca chegam. Lembro bem da virada para este século. Era como se estivéssemos vivendo dentro de um filme de ficção científica. O “bug do milênio” — o temido Y2K — prometia transformar computadores em feras desgovernadas, desligar usinas, fazer aviões despencarem e colapsar o sistema bancário mundial. Quem viveu o réveillon de 1999 para 2000 com um olho no céu e outro no caixa eletrônico sabe: não houve bug, só uma queima de fogos a mais e um alívio geral por não ter ocorrido nada digno dos jornais do dia seguinte. Ainda teve gente que repetiu a cantilena na virada de 2000 para 2001. Nada. Já a profecia popular do “de mil passará, de dois mil não passará” parecia saída de rima de benzedeira. Era sussurra...

A guerra de Curvelo contra as muriçocas

Imagem
S ílvio Ribas Por décadas, Curvelo (MG) travou uma guerra contra um exército numeroso e obstinado. Como praga bíblica, nuvens de pequenos insetos alados invadiam todos os lares, desde os modestos aos abastados. Impiedosas, as muriçocas azucrinavam cidadãos de qualquer idade com os seus zumbidos irritantes e picadas insistentes, desafiando as famílias e as autoridades. Os recursos da cidade para combater as insolentes e onipresentes muriçocas naqueles anos 1970 e 1980 tinham eficácia limitada, bem piores que os disponíveis hoje contra todo tipo de mosquito. Os pernilongos seguiam roubando nosso sono e cobrindo nossa pele de desagradáveis marcas da noite anterior. Era só chegar o verão para elas dominarem a área. No embalo das chuvas e das altas temperaturas, milhões de pequenas criaturas voadoras emergiam das ruas, dos quintais e das profundezas da famosa grota, reduto pantanoso que se tornava, a cada estação, o seu principal foco de reprodução. A prefeitura até tentava reagir com óleo ...

Os meus papas

Imagem
  A fé que move montanhas faz um homem ser o líder espiritual de um bilhão de fiéis. Para outra parcela expressiva da humanidade ele é um mensageiro da paz em tempos de intolerância. Francisco, esse pastor que se ergue na simplicidade, foi o papa do divino mistério de ser também nosso irmão. Morreu neste 21 de abril, deixando um legado que se estende muito além das fronteiras da Igreja. O argentino Jorge Bergoglio fez história já no primeiro minuto do pontificado ao se dizer pecador, fazer piada com o conclave e pedir orações. Depois vieram declarações, encíclicas e gestos dignos de representante do Criador, abraçando os que mais sofrem. Também carregou, como todo homem, suas contradições: humanamente falho, não esteve no Brasil para celebrar os 300 anos de Nossa Senhora Aparecida, ausência interpretada como rancor político. Com mais de meio século de batizado na Igreja Católica Apostólica Romana, me regozijo por ter sido conduzido por cinco notáveis sucessores de Pedro. Lembro-me ...

Ver o Halley? Não cometa essa loucura

Imagem
Sílvio Ribas O noticiário de 1986, no Brasil, parecia orbitado pela letra C: Constituinte (a nova Assembleia), Challenger (a espaçonave que explodiu no ar) e... Cometa de Halley. Este último, no entanto, acabou decepcionando multidões ao redor do mundo. Durante meses, fomos bombardeados por uma enxurrada de anúncios, vendendo de telescópios a camisetas, enquanto programas de TV, canções e revistas em quadrinhos cultivavam a expectativa por um espetáculo celeste inesquecível. Mas todo aquele barulho se esvaziou diante de um mero risco luminoso no céu das noites de fevereiro — tênue, esquivo, só visível aos olhos mais atentos (e pacientes). Lembro dos trabalhos escolares sobre o tema e até de ouvir falar do velho roqueiro Bill Haley, cuja famosa mecha no cabelo evocava, ironicamente, a cauda de um cometa. E o tal show astronômico? Cadê? Em 1910, na penúltima passagem, o Halley causara pânico — gente temia um apocalipse envenenado por seus gases — e ao mesmo tempo esperança, saudado como ...

Tiradentes, presidente do Brazil

Imagem
Neste 21 de abril de 2025, quando o Brasil relembra o sacrifício do alferes Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, proponho imaginar um cenário alternativo: e se a Inconfidência Mineira tivesse triunfado? Inspirados na revolução americana, os inconfidentes sonhavam com um Brasil bem diferente do que a História nos entregou. Se vitoriosos, teríamos fundado uma verdadeira república, moldada pelo ideal da 0liberdade: de empreender, de opinar, de construir uma sociedade com menos Estado e mais indivíduo. Provavelmente seríamos uma confederação — não um Estado federal dominador. Cada estado teria sua autonomia fortalecida, refletindo as vocações regionais e criando polos de prosperidade. O espírito progressista que incendiou Minas Gerais em 1789 poderia ter se alastrado por toda a colônia portuguesa. Com menos amarras burocráticas e mais fé na liberdade, talvez tivéssemos superado até mesmo os Estados Unidos em riqueza e inovação, projetando o Brasil como uma potência mundial já no...

Saudosas meninices

Imagem
Sílvio Ribas Na pequena Curvelo dos anos 1970 e 1980, quando o tempo era mais lento e as vidas eram menos atribuladas, eu era um menino de pés descalços e cabeça cheia de ideias. Cada dia era dia de descobertas felizes em casa e nas ruas, com brinquedos brotando do improviso e da farta imaginação.  Não havia limites para a fantasia: tudo ao redor podia virar qualquer coisa – e virava mesmo. A máquina de costura da minha mãe, com roda grande e barulhenta, se transformava em carro de corrida. Bastava girar o volante de ferro com as mãos para fazer curva na pista inventada da sala.  E o chuveirinho do banheiro? Era meu microfone de superstar — e como a acústica do box ajudava! Cada banho era um show. Também molhado ficava no tanque de lavar roupa, gelado e fundo, imerso na imaginária banheira cinza de um hotel cinco estrelas, onde me refrescava e esquecia do mundo. Já o moedor de carne, com seu jeito assustador, assumia facilmente o posto de tiranossauro-rex, sempre à espreita no...

Conexões russas de Curvelo

Imagem
Que tal modão ao som de balalaicas e coquetel de vodca com licor de pequi? Baseado em levantamento primoroso do poeta, jornalista e acadêmico curvelano Newton Vieira, encontro surpreendentes e variadas conexões entre a minha Curvelo (MG) e a Rússia. Este elo alcança literatura, moda, política, pedagogia e até a dança clássica. Entre essas pontes simbólicas, destaca-se a figura do escritor curvelano Lúcio Cardoso, reverenciado como o “Dostoiévski brasileiro”. Admirador confesso dos grandes mestres russos, como Dostoievski e Tolstói, ele não apenas leu e refletiu sobre suas obras — como registra em seus Diários —, mas chegou a traduzir Ana Karênina, de Tolstói, em 1943.  A obra-prima de Cardoso, Crônica da Casa Assassinada, foi laureada recentemente nos Estados Unidos com o Best Translated Book Award (BTBA), na categoria ficção. O legado de Lúcio representa talvez o exemplo mais fulgurante dessa afinidade curvelana com o espírito russo. Outro autor curvelano, Marcos de Lemos, homenag...

Minha pequena sorte grande

Imagem
Sílvio Ribas Ao longo da minha vida, certos fatos foram surgindo como sussurros da fortuna — dádivas singelas que me faziam crer no dia em que o destino me brindaria com algo maior. A verdade é que o meu sucesso ocasional em sorteios e jogos de azar em nada mudou os rumos da minha caminhada. Essas alegrias breves compõem a minha pequena sorte grande — esse curioso privilégio de ganhar sem frequência, sem método, só no acaso. E ela começou na minha sertaneja Curvelo (MG), lá nos anos 1980, no ponto mágico da lendária Esquina da Sorte, na borda da Praça Benedito Valadares.  Entre imagens de santos, velas e outros objetos místicos, reinava ali pacificamente o sincretismo brasileiro e a fé cotidiana dos apostadores do jogo do bicho. Minha superstição adolescente se limitava ao trevo de quatro folhas e um a figa de madeira, comprados ali mesmo e sempre no bolso.  Foi aos 12 anos, na Esquina da Sorte, que me ocorreu o primeiro assombro da pequena sorte grande. Na ida para a escola, ...

O terrível encontro de laborfobia e automação

Imagem
Sílvio Ribas O avanço da tecnologia costumava ser celebrado como aliado da produtividade e do bem-estar. A cada revolução industrial, a expectativa era de que as máquinas liberassem o ser humano das tarefas mais penosas, abrindo espaço para mais criatividade e significado.  Mas o que observo hoje é uma perspectiva distinta – e perturbadora: o encontro entre duas forças poderosas e terrivelmente complementares – a avalanche de automação guindada pela inteligência artificial e a crescente aversão ao trabalho (laborfobia), sobretudo entre as novas gerações.  O desprezo pela ideia tradicional de trabalho me assusta. Vejo emprego com carteira assinada (CLT) virando sinônimo de mediocridade profissional e exploração até mesmo entre crianças. Sem pudor, trabalhadores, sobretudo do serviço público, queixam-se da rotina presencial, alegando sofrimento psíquico. Cada vez mais jovens mostram desinteresse por jornadas regulares, empregos fixos e estruturas hierárquicas. Muitos preferem vi...

Marcas de Curvelo em nós

Imagem
Era uma vez uma cidade que cantava suas glórias no vento, cobria afetos de poeira e tingia o tempo com a cor da saudade. Curvelo, portal do sertão mineiro, celebra neste 2025 seus 150 anos como município. Mas a sua alma tem todas as idades. Lembro como se fosse hoje da festa do centenário. Os céus se abriam em rastro de fumaça, desenhados pela esquadrilha que cruzava o azul profundo. As ruas pulsavam em desfile, no compasso da música e no brilho dos uniformes alinhados.  O orgulho reluzia no rosto de sua gente. E a edição especial de "CN", em formato de revista, guardava aqueles dias como quem embala um tesouro. Meio século depois, Curvelo me chama outra vez para relembrar seus feitos e seus amores.  Atendo ao chamado, listando os marcos que nunca se desataram da mente e do coração, compilados com amigos de infância, no nosso grupo de WhatsApp. Fizemos alguma omissão imperdoável? Talvez. Vejamos nosso Top 10 da saudade. 1. MATINÊ NO CINE VIRGÍNIA -  Sob aquelas luzes...

Meu laboratório de quintal

Imagem
Sílvio Ribas As maiores empresas do mundo de hoje nasceram em garagens apertadas, dormitórios estudantis desorganizados e laboratórios universitários de fundos de corredor. Essas gigantes tecnológicas deram os primeiros passos de forma improvisada, guiadas só pelo sonho de jovens empreendedores.  Bem antes dessas histórias de sucesso global, havia também pequenos universos de invenção, onde a imaginação infantil transformava qualquer canto num centro de descobertas. O meu ficava no barracão do quintal de casa, lá na pequena Curvelo (MG) daqueles distantes anos 1970 e 1980. Entre latas de tinta vazias, ferramentas encostadas e cheiro de terra molhada, ali montei “o laboratório”. Sozinho ou com amigos, passava tardes absorto em experiências que misturavam curiosidade e boa dose de improviso. O início dessa aventura foi o kit “Jovem Cientista”, da Estrela. Esse foi o presente inesquecível que ganhei de Natal da querida Cybelle Torres, minha prima engenheira química com carreira na Usi...

Autoridades leves e doces

Imagem
Sílvio Ribas Recordo com ternura os meus dias de menino em Curvelo (MG), época em que o respeito e a solenidade permeavam muitos instantes da vida cotidiana, marcados pela presença de autoridades cujos poderes – reais ou meramente simbólicos – se desdobravam em cenas quase ritualísticas.  Naquele universo dos anos 1970 e início dos 1980, os mestres de cerimônia e chefes de trabalhos, com vocábulos pomposos, anunciavam sempre as “autoridades civis, militares e eclesiásticas”, imbuindo os eventos de uma atmosfera de formalidade quase sacra. Admirava ver aquilo tudo. Todavia, o encanto da minha infância residia também no elenco paralelo de personagens, dotados de títulos exuberantes para funções que, embora revestidas de alguma pompa, tinham leveza e doçura próprias. Não eram donos de poder temível, mas protagonistas folclóricos e carismático. Havia generais das bandas, presentes em festas populares e coretos, conduzindo desfiles com graça. Eles eram a personificação da música e da ce...

A diplomacia do fino licor

Imagem
Sílvio Ribas Desde que deixei Curvelo (MG) para desbravar o mundo, levo como cartão de visitas um verdadeiro emblema de nossa terra: o fino e renomado licor de pequi. Foi com o inesquecível prefeito Paulo Dayrell que aprendi o gesto diplomático de presentear amigos e colegas de trabalho com o Cristal Brasil – um ato capaz de aproximar corações, abrir portas e iluminar sorrisos, enquanto exalta nossas raízes a cada brinde. Oferecer algo genuíno de nossa cultura é a essência da hospitalidade mineira. E, com o Cristal Brasil, alcançamos um degrau mais alto: encantar os cinco sentidos. Do aroma doce, que lembra a “bala delícia”, como descreveu com carinho uma amiga paulistana, ao tilintar das tacinhas em encontros profissionais e familiares, cada golinho sela amizades e nos faz viajar às origens. Durante anos, autoridades e empresários de Curvelo escolheram essas garrafas sinuosas – que, para mim, remetem à icônica Jeannie dos velhos tempos da TV – como souvenir oficial, um mimo para nobre...