Um mausoléu para o Padre Corvello

Heróis, figuras folclóricas e personagens inspiradores ajudam uma sociedade a forjar sua própria identidade, a compreender seus valores, costumes e ideais e, ainda, ser reconhecida por esses elementos. Tiradentes (Ouro Preto-MG), Chica da Silva (Diamantina-MG), Dona Beja (Araxá-MG), Dona Joaquina (Pompéu-MG), Maria Quitéria (Feira de Santana-BA), Antônio Conselheiro (Canudos-BA), entre outros, são exemplos de pessoas que ajudam a definir grandes comunidades. Nesse grupo deveria estar o Padre Antônio Corvello de Ávila (?-1749), um ilustre desconhecido dos brasileiros em geral e até mesmo da maioria dos moradores de Curvelo (MG), cidade que ele fundou no sertão conturbado do século 18.

A recente morte do historiador Geraldo de Souza me pôs a refletir sobre o fato terrível de que o trabalho dele e de tantos que o antecederam merecia e merece prosperar, pois a biografia de alguém tão relevante para a história curvelana, mineira e nacional quanto o redentorista Corvello (com o em vez de u e dois eles) está incompleta e precisa ser difundida. Sabemos que nasceu em Vila Real (BA), mas desconhecemos a data do nascimento, por exemplo. O polêmico fundador baiano de uma extensa localidade no coração de Minas Gerais está conectado ao episódio histórico da Guerra dos Emboabas, maior conflito armado das Américas até então, à expansão da agropecuária pelo interior da colônia e, ainda, às raízes açorianas no Brasil. Relatos de professores como Geraldo Rodrigues Álvares (Geraldinho) e Carla Anastasia dão conta da importância da personalidade e da trajetória de Corvello.

Grande fazendeiro, escravocrata, pistoleiro, sacerdote... um homem multifacetado, um desafio aos pesquisadores de ontem e de hoje. Se não fosse Sílvio Gabriel Diniz encontrar no Museu do Ouro, em Sabará (MG), o testamento dele, saberíamos quase nada sobre um mito que muito diz sobre quem somos. A história desse filho de uma família de latifundiários, que tinha quatro irmãos também padres, explica a força do papel singular de líderes católicos enraizados na nossa terra. Não por acaso tivemos padres prefeito, o Monsenhor João Tavares de Sousa, em 1947, e presidente da câmara, o Monsenhor Francisco Xavier de Almeida Rolim, vereador de 1892 a 1937.

Por essas e outras razões, clamo aos meus conterrâneos que iniciemos uma agenda com 300 anos de atraso. É preciso jogar luz sobre a memória e o legado deste ícone de nossa história, responsável pelo começo de tudo no munícipio. Essa missão pode ser cumprida na forma de uma ação da administração municipal, de uma campanha de uma entidade civil ou de um simples movimento no qual embarcariam cidadãos de origens diversas, cada um contribuindo com seu tempo, suas ideias e seus recursos. Vamos nessa? Todos temos a ganhar, desde a nossa autoestima ao turismo local.

Para ser mais específico, proponho uma tarefa que não tem nada de macabra: o erguimento de um mausoléu para o Padre Corvello. Ele representaria mais do que uma homenagem póstuma a um homem esquecido pelos descuidos de gerações que o sucederam. Seria um símbolo poderoso de reconexão com as nossas raízes, um tributo àquele que fundou o arraial que viraria Curvelo e cujos feitos foram enterrados pela poeira do tempo. Para começo de conversa, é preciso ir até os seus restos mortais, sobre cuja localização também pairam constrangedoras dúvidas. Até onde eu me lembro, dos meus tempos de menino, o pedestal na Praça do Santuário era a indicação oficial de onde ele estaria no seu repouso eterno. Até mesmo essa placa dos anos 1950 destacada no vértice da calçada de pedras desapareceu subitamente, sem darem qualquer aviso.

Em meio à correria da vida moderna, é fácil esquecer os pilares sobre os quais a nossa cidade foi erguida. Mas o Padre Antônio Corvello de Ávila, com mesmo nome de nosso padroeiro, não deveria continuar sendo relegado ao anonimato. Sua vida, marcada por embates com a metrópole e por uma influência regional incomparável, merece ser resgatada de vez do esquecimento. Sabemos pouco sobre ele e promovemos pouquíssimo a sua história, admitamos todos. Explorar aspectos da conquista do solo mineiro, a influência nele da fé católica e as ganâncias do Império Português nos anos de 1700 ajudaria a compormos um retrato mais completo desse personagem enigmático. Olha aí um tema para redação escolar dos alunos de Curvelo!

Corvello não era apenas um líder religioso, mas também um estrategista político e paramilitar e um empreendedor visionário, cujas ações ecoam até os dias de hoje. Como que saído das novelas globais de Dias Gomes, o Padre Corvello personificava a tríade do poder local – prefeito, coronel e padre –, mas todos esses em um só personagem. Ele transcendeu as fronteiras da Igreja, da política e da economia, moldando o destino de nosso torrão de maneira que ainda não compreendemos plenamente.

A elaboração de estudos e a construção de um monumento em sua honra não são apenas questões de honra, mas a grande oportunidade para os curvelanos reconciliarem-se com o seu próprio berço, reconhecendo o papel desse personagem seminal para como nos vemos. E o momento melhor para iniciar essa discussão é justamente durante o período de campanha municipal. É hora de reavivar o interesse pelo nosso fundador, de salvar sua biografia do abismo do esquecimento e criar marcos para evidenciar a sua importância antológica. É hora de dar vida novamente ao padre primeiro e, com ele, engrandecer ainda mais o nosso orgulho.

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